Tuesday, January 14, 2020

A MULHER DO DESERTOR

O espetáculo Desertores, um experimento, do Coletivo de Teatro Alfenin provocou-me certas reflexões acerca da condição feminina. Ele foi construído a partir do texto O Declínio do egoísta Johann Fatzer escrito por Berthol Brecht, mas nunca finalizado pelo autor. As cenas giram ao redor de um grupo de soldados desertores que giram em torno de uma personagem chamada Fatzer. Ao ver o espetáculo tive a sensação desta coisa que gira uma dentro da outra como o mecanismo construído por um relojoeiro macabro e na qual há uma peça que não se encaixa, que é Teresa,esposa de um dos soldados.

A adaptação e encenação que foi feita por Márcio Marciano construiu um caminho para a personagem Teresa, enigmática e profundamente humana. Enquanto todas as outras personagens são caricaturas de sua condição social, ela protagoniza a ação do espetáculo sofrendo a desumanidade e a brutalidade das condições da guerra, onde todas as outras pessoas foram perdendo a sua individualidade e se tornando peças de um imenso jogo.

Tornou-se Teresa a vitima perfeita quando tentou  reivindicar a sua humanidade, a atenção para o seu corpo, para  a sua sexualidade, e no contexto da guerra ela foi sendo somente mais uma peça para os homens. O seu marido a recusou; ele destruído como pessoa não tinha mais desejo sexual pela esposa, e ela terminou sendo estuprada pelo Fatzer, que não era o sexo que ela reivindicava. Todas as outras personagens viveram os seus papeis na guerra, mas Teresa sofreu a sua humanidade diante do horror de conviver com pessoas que foram sendo brutalizadas, lembrando a metáfora dos Rinocerontes, peça de Eugene Ionesco, onde todas as personagens foram se transformando naquele animal, exceto uma.

O espetáculo ocorreu no espaço do Coletivo Alfenin que fica na cidade baixa. Eram apenas 35 lugares, de modo que era preciso chegar cedo para conseguir uma senha; o espetáculo era gratuito. Este espaço localiza-se próximo a uma região muito pobre da cidade. A presença do publico naquele lugar inclusive proporciona um pequeno comércio de água mineral, pipoca e flanelinhas de estacionamento. 

O público espera do lado de fora para a primeira cena que ocorre na rua com os atores e atrizes distribuindo panfletos, simulando a luta dos trabalhadores em denunciar os interesses imperialistas na guerra distantes das necessidades do povo.

Em seguida o público é conduzido para o espaço cênico formado por um corredor de pedras ladeado pelas cadeiras; os dois lados de espectadores ficam vendo um ao outro e são deste modo colocados dentro do espetáculo. Inclusive o espetáculo chega a interpelar o publico diretamente. 

Vimos os quatro soldados que abandonaram as fileiras da guerra, eles fizeram a sua trajetória em busca de casa, famintos; não podiam voltar porque seriam mortos e precisavam ir para casa, que também significava a morte. Estes soldados não eram mais seres humanos em sua individualidade, eram máscaras sociais, e neste estado de ser eram capazes de cometer qualquer barbaridade, pois qualquer outra pessoa era também somente uma mascara cuja vida era o que menos importava.

A fome deles, ganhou uma metáfora inusitada - eles procuravam por carne, queriam comer carne, desejavam a carne crua sanguinolenta - havia também uma fome de violência. Em sua caminhada chegaram a casa de um dos soldados onde a sua esposa o esperava. Nós já a tínhamos visto antes, quando Teresa apareceu conversando com as vizinhas, esperando pelo marido, tendo uma imensa fé na organização do mundo. Para ela, tudo o que mais necessitava era que o seu marido voltasse para casa. A partir do momento em que ela surgiu na cena o espetáculo passou a girar em torno dela; ela se torna a protagonista. O publico acompanhou as reações daquela mulher e sua vontade em ter a sua família restaurada. No entanto, quando o seu marido chegou, ele já não era mais o seu marido, era somente uma casca.

O público foi lembrado da tragédia das sociedades em guerra permanente, como é o caso dos países imperialistas com relação aos que contrariam os seus interesses econômicos no mundo, ou do Brasil cujas elites em sua prática de guerra híbrida contra o seu próprio país, fabricam para o seu próprio horror cotidiano, legiões de desumanizados que direta e indiretamente são capazes de provocar muito sofrimento. 

A lógica da guerra permite a desumanização do inimigo, mas traz como conseqüência a desumanização de si mesmo. O espetáculo mostra como a ideia da guerra autoriza a violência sempre que as pessoas “desertam de sua condição humana”. Não é preciso fazer um esforço muito grande para enxergar que se foge da guerra em busca da própria humanidade, a preservação da vida, mas a vida já ficou nas trincheiras.  A guerra vai produzir o seu horror de uma forma ou de outra. A paz é o único caminho.

Teresa, a mulher do desertor, também foi para a guerra, mas não sabia disto.

O espetáculo Desertores, um experimento foi realizado pelo Coletivo Alfenin de Teatro, Apoio Cultural do Itaú Cultural. No elenco: Adriano Cabral; Edson Albuquerque; Kevin Melo; Lara Torrezan; Mayra Ferreira;  Murilo Franco; Paula Coelho; Vitor Blam e Victor Dessô. Cenografia de Márcio Marciano. Figurinos de Maria Botelho. Iluminação de Ronaldo Costa. Identidade visual: Patricia Brandstatter. CVomposição Musical: Kevin Melo Mayra Ferreira;Márcio Marciano; Paula Coelho; Walter Garcia e Vitor Blam. Projeção: Rebecca Dantas. Animação: Livia Costa. Costura: Maria José.Serralheria: Anderson Galdino. Produção executiva: Gabriela Arruda. Dramaturgia e direção: Márcio Marciano.

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