Wednesday, January 02, 2019

DEVANEIO

O espetáculo Devaneio com a atriz Eulina Barbosa, foi a joia que encerrou a III Mostra Made in Lima, no dia 9 de setembro de  2018, às 19 horas, no Teatro Lima Penante, dentro de uma programação intensa com 15 outros espetáculos, iniciada em 28 de agosto. A Mostra Made in Lima reuniu os espetáculos que utilizaram as dependências do Núcleo de Teatro Universitário da UFPB para os seus ensaios de agosto de 2017 a julho de 2018 como contrapartida pelo uso do espaço.Os ingressos com preços reduzidos foram oferecidos com um desconto especial para aqueles que chegassem até meia hora antes do início.

O espetáculo trata de memórias de infância e o reencontro com os tios e tias que povoaram aquele período da vida da atriz. Um mergulho dentro de si mesma que arrastou o publico, hoje tão distante de suas memórias. Vivemos em um tempo no qual as grandes redes de televisão desmancharam as tradições orais e promoveram a destruição da alma de um povo, que hoje se alimenta de fragmentos de textos pelas redes sociais. A grande tragédia de uma nação que perdeu o seu passado, que substituiu a sua vida pelo fundamentalismo religioso. Neste espetáculo assistimos a busca de uma pessoa pelas suas origens e um convite para que cada qual recupere a sua identidade.

O público aguardava ansioso na porta do teatro. Cada espectador recebeu um ingresso com uma ficha adicional,e em cada uma, havia um dos quatro nomes a seguir: linha; agulha; tecido ou botão. Assim, iniciou-se um ritual mágico de envolvimento que deixou os espectadores com a imaginação excitada, como se todos ali fossem parte de uma imensa caixa de costura, daquelas que as nossas tias costumavam ter em suas casas e que despertavam a fantasia de qualquer criança que pusesse os olhos nela. Ao  entrar no teatro todos foram encaminhados para o palco onde estavam dispostos setores de cadeiras com os nomes correspondentes a cada ficha distribuída.

Depois de cada espectador já devidamente colocado em seu lugar na imensa caixa de costura que era o palco, a atriz no centro do circulo, iniciou um longo namoro com um vestido branco rasgado. A pulsação de sua movimentação produziu uma sensação hipnótica de relaxamento e segurança. Em determinado momento, a atriz pediu ao público que a ajudasse a colocar a linha em uma agulha. E neste gesto interativo, o público mergulhou junto para as memórias, indo para um lugar onde as personagens e lugares da experiência humana se encontram, aquele recanto profundo e desconhecido do inconsciente coletivo. Foi como entrar pela porta do reino interior dos sonhos.

Numa das cenas belas do espetáculo, evocou-se a experiência do amor, daquele acontecimento de busca de sentido da vida na paixão por alguém; do encontro de uma alma gêmea; uma busca dolorosa e necessária para vencer o exílio de si mesmo. E em um tempo no qual a hipocrisia simula o bem do amor na boca de criaturas malvadas, que como seres vampirescos assolam o céu do Brasil, o público respirou fundou, trazendo para a superfície a sua própria solidão.  Ali, as pessoas entraram em contato com a pureza do ato de amar. Havia um noivo amado representado por uma flor branca colocada sobre um tamborete.

Noutro momento o público reviveu o dia de São Cosme e São Damião, através do espírito de uma criança, um Êre, na linguagem Yorubá, que baixa na cena com a sua alegria esfuziante. Para aqueles que nunca viram uma festa dessas em um templo de Candomblé ou de Umbanda, foi uma oportunidade de conhecer um pouquinho da cultura afro-brasileira espalhada pelas entrelinhas de nossa identidade cultural. Em cena, o Erê, brincou com as pessoas, distribuiu confeitos e estourou quatro balões de borracha numa grande brincadeira de quebra-panela, e o público, como criança atirou-se em busca dos doces numa feliz algazarra.

Noutra cena, mais adiante, chegou o dia do casamento. Um poderoso ritual alquímico, no qual o público foi trazido para a cena como testemunha do evento. O palco pareceu tomar a forma de uma catedral gótica, e todos  envolveram-se emocionalmente com as personagens, e era possível ver no olhar de cada um dos presentes esta empatia. A platéia havia recebido uma porção de arroz, e quando os noivos saíram pela porta da igreja, o ar cobriu-se de uma nuvem branca de arroz e de gritos de prazer; houve um grande engajamento das pessoas naquele momento. É preciso lembrar que apesar daqueles que pregam o ódio, a vida e o amor foram ali bem celebrados. 

No final, um barquinho navegou pelo palco enquanto a personagem seguiu com a sua vida. Foi uma metáfora poderosa, pois a vida é esse mar , que as vezes tem calmarias, outras vezes terríveis tempestades. Aproveitando a citação conhecida do General Romano Pompeu de que “Navegar é preciso, viver não é preciso”, mas saindo este lugar comum, já tão citado, para o espetáculo que construiu uma outra arrumação de que “Navegar é preciso, porque viver é bom demais”. A  performance primorosa da atriz Eulina Barbosa, a direção de cena cuidadosa e sensível de José Maciel brindaram os espectadores com minutos de grande beleza estética.

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