Tuesday, June 19, 2018

NAQUELE BAIRRO ENCANTADO

O fato que mais impressiona os observadores atuais da cultura brasileira  é a perda da memória coletiva. Uma tempestade midiática veio varrendo todo um pais de sua poesia e de alguma maneira tétrica implantando modos mais grosseiros na vida das pessoas. É como se tivéssemos sido vítimas de um tipo de guerra que destrói a alma e não o corpo. Não se trata somente de achar que o que passou era melhor; não é isso, mas a nostalgia de um clima de romance, que parece hoje estar diluído em espaços adversos ao amor.

Algo muito especial aconteceu. Sob a luz de uma lua que estava se enchendo de brilho e tendo no  alto da cabeça  a constelação de aquário o VI Festival Nacional de Teatro do Piauí,na cidade de Floriano, apresentou o espetáculo Naquele Bairro Encantado, do Grupo de Teatro Público de Minas Gerais, da cidade de Belo Horizonte,  fazendo parte da programação dos espetáculos de rua.

 No dia 01 de dezembro de 2017, o Festival Nacional de Teatro do Piauí, teve uma noite memorável que nos transportou para um tempo de paixões e encantamento. Foi como voltar ao passado, fazer uma viagem a um tempo de respeito, de cavalheirismo, de amor verdadeiro. É preciso repetir que sempre que pensamos em voltar ao passado se vem com aquele clichê de que lá tudo era mais belo, mais correto. Não é bem assim, os tempos de outrora também foram tempos comuns, com as suas contradições, grandes belezas e grandes horrores, mas houve algo naqueles dias distantes que merece uma certa nostalgia, que era  a prática de se fazer serestas, de se cantar para a pessoa amada a altas horas da madrugada.

Num cenário deslumbrante na frente do Teatro Maria Bonita, na Avenida Frei Antônio Curcio, que fica paralela ao Rio Parnaíba, ficaram reunidos todos os espectadores assistindo ao primeiro momento do espetáculo.Os espectadores foram abduzidos  pela simplicidade da proposta,  muito bem realizada por seus competentes atores e atrizes, com um misto de magia e recordação. Eles faziam o uso de  máscaras que potencializava as personagens e estimulava o estado de hipnose no qual a platéia foi colocada. A alegria de compartilhar da sensação de que se  pode amar é magnífica. Todos esperavam que tudo acontecesse ali. Mas, depois de alguns minutos, os mascarados foram diluindo o  espaço cênico rígido e puxando uma caminhada pela avenida.

Aquilo que parecia ser o óbvio, logo mudou em algo encantador. O público foi convidado a seguir junto com o grupo, numa caminhada de seresta, coisa de um passado distante, e do ponto de vista simbólico, um distante mais distante ainda, tal o embrutecimento de nossa sociedade hoje em dia. Neste tempo de pavoroso culto a comportamentos desumanos, é raro ver  coisas de grande delicadeza como cantar antigas canções de amor na rua.


 O grupo foi arrastando a platéia e cantando. Entre as primeiras canções a evocação de uma personagem daqueles  momentos, o boêmio:”Boemia, aqui me tens de regresso e suplicante te peço
a minha nova inscrição”; a letra de Nelson Gonçalves era cantada por todos como um hino daquele território. Teve um momento na Avenida Frei Antônio Curcio que o grupo parou para cantar para um homem que estava em um bar. O boêmio havia voltado para “sonhar em novas serenatas e abraçar seus amigos leais”.

A seresta continuou celebrando aquela rua com uma cantiga de domínio popular,”Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhante para o meu amor passar”.

 Na esquina da Avenida Frei Antônio Curcio com a rua Rui Barbosa, explodiu o bolero Perfídia, a letra de Alberto Dominguez na versão de Lamartine Babo fazendo vibrar as aguas do rio Parnaiba. O cortejo amoroso entrou pela rua Rui Barbosa ainda sob a força daqueles versos:”Amei, como ninguém te amou querida. De ti o menor gesto adorei, esquecido da própria vida”.

Ao entrarmos naquela rua,  o grupo foi informado que naquele dia era o aniversário de Dona Iolanda, que morava ali e fazia alguns instantes tinha entrado para dormir. O grupo parou em sua porta  e começou a cantar:”A Deusa da minha rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj:”A Deusa da minha rua tem os olhos onde a lua costuma se embriagar; nos seus olhos, eu suponho que o sol num doirado sonho vai claridade buscar...”

Na nossa imaginação toda a rua foi preenchida de luz, e todos os participantes daquele acontecimento viram que a janela daquela casa foi se abrindo, e de lá surgiram aqueles cabelos brancos, lindos e brilhantes como a lua que parecia descer para compartilhar conosco aquele momento. Eles cantaram Meu Primeiro amor, a guarânia famosa de José Fortuna e Pinheirinho Junior: “Você nem sequer se lembra de ouvir a voz de um sofredor, que implora por seu carinho, só um pouquinho do seu amor. Ela participou, emocionou-se e agradeceu, disse que aquele havia  sido o maior presente de aniversário que recebera em toda a sua vida.

 Na casa frontal a de Iolanda morava outra senhora chamada Amélia, que também saiu a rua e interagiu com o grupo que trouxe para a terra Lupicinio Rodrigues através de Felicidade:”A minha casa fica lá de traz do mundo, onde eu vou em um segundo quando começo a cantar. O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começo a pensar”.

 Assim o grupo continuou o seu caminho. Lá adiante dobraram a esquina à esquerda na rua Sete de Setembro e encontraram um senhor em uma calçada, ele parecia esquecido de tudo, mas então o grupo de teatro  começou a cantar Chico Mineiro, uma antiga toada de Tonico e Tinoco e ele tomou animo e começou a cantar junto com o grupo:

“Fizemos a última viagem
Foi lá pro sertão de goiás
Foi eu e o Chico mineiro
Também foi um capataz
Viajemo muitos dia
Pra chegar em ouro fino
Aonde nós passemo a noite
Numa festa do divino
A festa estava tão boa
Mas antes não tivesse ido
O Chico foi baleado
Por um homem desconhecido
Larguei de comprar boiada
Mataram meu companheiro
Acabou-se o som da viola
Acabou-se o Chico mineiro”



Todos se emocionaram com a aquela cena magnífica, que somente o teatro é capaz de proporcionar. A arte teatral é este instrumento poderoso de construção da alma humana.

 O Grupo continuou com o seu périplo e foram vindo com mais canções. Fez a volta na Avenida João Luis Ferreira, a medida que caminhava mais pessoas se integravam ao grande grupo, parecia algo que somente acontece em momentos de pura magia construídas pela mão habilidosa de um escritor, mas ali em carne e osso, estava acontecendo, algo inesquecível. Por fim fizeram a volta e foram para Avenida Frei Antônio Curcio indo em direção ao Teatro  Maria bonita, onde foi finalizada a apresentação.

 Mas aqueles acontecimentos continuaram a ecoar nos corações. Naquela noite ninguém voltou para casa sem ter provado do romantismo, da beleza de amar, de festejar a vida. Foi um ato político importante nos lembrarmos da alegria, pois os inimigos da democracia, apostam na amargura e na violência. Nós temos que lembrar sempre que vale a pena amar, que tudo o que mais vale na vida é sentir-se bem ao lado de  pessoas que nem sabemos o nome, mas quando olhamos para os seus olhos vemos que ela está ali , compartilhando ao nosso lado da beleza de viver, que estamos todos ao lado da corrente mágica do  rio Parnaíba em seu fluxo, e tendo sobre as nossas cabeças as estrelas do céu esplêndido da cidade de  Floriano.

O Grupo de Teatro Público de Minas Gerais fez um ato de construção da realidade amorosa. Em tempos tão duros , nos  quais mal conseguimos achar graça em coisas puras, foi uma oportunidade singular  ver e participar de algo que congregou um verdadeiro espírito de  solidariedade  e camaradagem. Aquela seresta foi como um antídoto para a brutalidade de nossos dias. Valeu a pena.

Ficha técnica. Direção: Rogério Lopes. Dramaturgia: Larissa Alberti.Atuação: Diego Poça,  Larissa Alberti, Luciana Araújo, Marcelo Alessio, Rafael Bottaro e Rafaela Kênia. Direção musical e preparação vocal: Eberth Guimarães. Figurinos: Juliana Floriano. Criação e confecção de máscaras: Fernando Linares. Produção e realização: Teatro Público.

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