Monday, May 28, 2018

RAZÃO PARA FICAR

No dia 21 de maio de 2018 apresentou-se no I Festival de Monólogos Femininos Mulheres de maio o espetáculo Razão para ficar. Não há coisa mais terrível do que o silêncio daquelas que foram colocadas à margem da normalidade e abandonadas em manicômios. Quando os espectadores entraram no Teatro Lima Penante deram com a visão de uma mulher sentada em um banquinho dentro de uma gaiola, um cubo de arestas metálicas. Dentro dele um micromundo: uma escrivaninha, em cima uma tangerina e uma maçã, ao lado uma geladeira, e ao fundo uma pia com água corrente.

No entanto, paradoxalmente, aquele cubo era uma libertação de algo ainda  mais terrível. Tratava-se da representaçção de uma SRT, ou um serviço residencial terapêutico implantado no Brasil a partir de ano 2000 como parte da luta antimanicomial. Conforme o manual do Ministério  da Saúde: “O Serviço Residencial Terapêutico(SRT) ou residência terapêutica ou simplesmente "moradia" ­ são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves, institucionalizadas ou não”.

Razão para ficar foi construído pela atriz Ana Marinho a partir da leitura da tese de doutorado da Professora Thalyta Lima: As Oito Flores do Alto do Céu no Jardim da Desinstitucionalização, que analisa o depoimento  de oito mulheres usuárias de uma SRT. São as falas daquelas mulheres que construíram a personagem que vimos em cena, como tantas Clarices, Adélias e Marias. Há também trechos de Clarice Lispector, poemas de Adélia Prado e Lisbeth Lima.

 Uma mulher olhava para os espectadores como se fôssem transparentes. As pessoas temem ser  transparentes. Durante longos minutos fomos lentamente sendo acostumados àquele ritmo de viver, como se tivéssemos que ir sendo sintonizados naquela freqüência. As pessoas são como se fossem estações de radio que transmitem numa freqüência, e temos que nos sintonizar para nos encontrarmos.  Foi assim que a atriz Ana marinho foi levando o publico  para aquela sintonia. Poderíamos dizer, a princípio, que era um espetáculo sobre a loucura, mas não, somente se podia perceber a normalidade a partir de nossa própria medida de loucura e ali estava uma pessoa como qualquer outra.

 O espetaculo sabiamente nos levou primeiramente a um novo patamar de dialogo e somente depois, fomos apresentados a personagem. Razão para ficar é um espetaculo que primeiro abriu a porta do ser, como o buraco na raiz da arvore no qual caiu Alice para o seu mundo das maravilhas. Lá naquele outro mundo e já conseguindo estar com a personagem fomos conhecendo a vida de  daquela mulher, e ficamos sabendo que ela habitava uma casa de acolhimento de pacientes de um hospital psiquiátrico, que no movimento antimanicomial foram colocadas para morar em uma comunidade junto com outras pacientes.

 Temos acesso a sua história, ao seu desamparo e a sua solidão - grande marca do ser - a solidão e o abandono. Quantas não foram desprezadas pela familia e jogadas nesses lugares convenientes de negação do outro?

Ela disse de sua saudade da familia, até  desejava revê-los mas não conseguia mais ver o mundo além daquele universo, os dias apenas passavam, nela explodia o desejo, a sua sexualidade que fora contida de forma brutal. Em um determinado momento ela mostrou o seio para a platéia demonstrando que ainda estava ali uma bela mulher, não uma coisa , um elemento de estatística dos serviços de saúde, mas um sujeito desejante de ser  amado.

Ela levantou-se a abriu a geladeira, coisa que já tinha feito tantas outras vezes. Sentou-se ali diante das prateleiras e olhou. Os espectadores ficaram olhando através dos olhos  dela, indo fundo naquele lugar estranho, imaginando o que ela via; fantasiaram, além do frio ar que despencava do eletrodoméstico,o sentimento de como ali se aprofundava a criatura em seu abismo existencial.Uma geladeira, também símbolo de conservação, de fartura, de conforto. Talvez ali ela se lembrasse de sua vida de pobreza antes de ser arrebatada pela loucura. Mas é também na geladeira em outro instante que ela acessa o sonho, que saindo de lá projetado em luzes muticoloridas a envolve como um ectoplasma. Também da geladeira ela retirou uma faca, que fez os espectadores gelarem o sangue, e de lá também uma melancia, que foi partida em bandas, que ela comeu numa ferocidade canibal. Parecia que todas as coisas poderiam surgir daquela geladeira como objeto mágico e intermediário, como uma porta para outras dimensões. Ela sabia que aquele casa que lhe oferecia todos as oportunidades de  fuga, era um lugar de liberdade, pois o mundo lá fora além das portas de sua residencia é que era a prisão. A porta da geladeira representava a passagem para um mundo de  liberdade que não existe de verdade no mundo real. Os espectadores sentiram aquela dor, pois sabiam que também viviam todos prisioneiros de não sei quantas mentiras.

 Ninguém sabe qual foi a gênese de sua doença, somente que ali, pelos motivos da ordem institucionalizada, ela fora levada pela policia e ali jogada para sempre. Ela foi refletindo  sobre a sua condição como ser vivo, como uma criatura, mas nada ali parecia ter saída.

Razão para ficar tem dramaturgia de Ana Marinho. Direção João Paulo Soares. Cenografia de Maria Botelho. Figurino de Vilmara Georgina. Iluminação de Fabiano Diniz.  Produção Dudha Moreira

1 comment:

Unknown said...

Um texto sensível, preciso e de alto esmero e delicadeza a respeito desse trabalho primoroso. Parabéns pelo olhar Everaldo. Já vi três vezes esse monólogo e sempre sou tocado