Tuesday, May 08, 2018

O CORPO QUE ARDE

A linguagem da performance esteve presente na VIII Jornada de Pesquisa em Artes Cênicas promovido pelo Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal da Paraíba, em sua programação de atividades culturais.

 Na noite da quinta-feira, dia 2 de novembro de 2017, no Teatro Lampião, que é uma ruína de um teatro inacabado, com as suas paredes altas e tendo o céu por teto, a lua vindo participar como recurso de iluminação e uma platéia disposta a sentar no chão de concreto, seguindo a programação Espaços de Sobrevivência, apresentou-se a performer Letícia Argolo com o trabalho intitulado O corpo que arde.

 A platéia foi surpreendida pela manifestação de dor por tantos jovens assassinados. A performer informou que morre-se no Brasil mais do que na guerra da Síria; nos dois lugares a presença do horror. No palco coberto por um linóleo preto um mapa do Brasil desenhado com tinta verde e amarela e espalhados pelo chão grandes manchas de tinta vermelha.

 Na boca do espaço de cena, escritos com giz no chão o nome de jovens, que haviam sido assassinados ora pela truculência policial, ora pela violência do preconceito e da misoginia.

 Ao fim da primeiro momento da performance, quando as luzes se acenderam, a platéia ficou imóvel, nem aplaudiu, nem se moveu, então a performer tomada por este silencio doloroso, iniciou uma segunda fase do trabalho - o sangue de uma vasilha de tinta manchou todo o palco, o corpo semi-desnudo estava vermelho, a platéia emudecida.

 Quando tudo terminou, uma espectadora que estava na platéia, desatou um choro fino confessando - “eu sei o que é isso”. Em um terceiro momento a performer perguntou a platéia se ela queria dizer algo; um homem perguntou se a performer tinha tido alguém próximo assassinado pela policia. A performer confirmou que sim, ele também disse ter tido a mesma experiência. Sucederam-se muitos depoimentos espontâneos relatando casos de violência e assassinatos de jovens.

 A performer a passou a pedir que levantasse a mão os que conheciam de perto a violência policial, se conheciam alguém, se sabiam o que era a violência contra a mulher, os negros, os homosexuais. Viu-se uma dança de mãos que se erguiam e baixavam. Ao final ela sentou-se calada num recanto e aquela dor imensa tomou conta de todos.

 A performance tem este poder, de ser uma linguagem transversal, com a capacidade de ir direto às emoções. Antes da platéia chegar, pude conversar com a performer sobre a sua concepção e como o trabalho havia sido pensado.

Ela me disse que tudo havia começado da necessidade de dizer algo sobre a dor das familias, de amigos que perdem pessoas para a violência. Perguntei o porquê da performance, ela me esclareceu que há algo na linguagem humana que se perdeu, a violência foi banalizada; ver uma cena de violência tornou-se algo incorporado a alimentação com os programas de televisão que destilam horrores nos horários das refeições. Hoje se come o feijão com arroz e sangue. As pessoas se acostumaram ao que é terrível e inaceitável, basta ver o modo como se exacra os direitos humanos.

 Ela argumentou que uma saída para o vazio das palavras era ir por um caminho que levasse a platéia a sentir, que se houvesse uma saida para tudo isso, seria a capacidade da pessoa de se colocar no lugar do outro, de poder sentir a dor do outro.A performance teria esta força.

Ela citou Antonin Artaud para justificar a expressão deste encontro cruel com a vida humana e suas dores.

E também falou da inspiração que tinha da leitura dos trabalhos desenvolvidos por Grotowski, da necessidade de ir além do teatro convencional.

De fato, pudemos assistir a eficácia de seu trabalho conduzindo a todos ali para um tipo de contato pavoroso e cruel com o sofrimento. Dentro das ruínas do Teatro Lampião protegidos pelas suas altas paredes ficamos imaginando  que  mundo era esse que estava lá fora, que a beleza da lua e das estrelas que tomavam o céu também abrigavam  a contradição da bestialidade humana.

Era perceptível a grande emoção que tomou a todos. Possuídos por este clima a platéia se retirou devagar caminhando como se tivesse sido quebrada em seu conforto e ilusão de um mundo que vende a aparência de que tudo está no seu lugar.

 A performance com o seu poder de abrir-se em rede conectando-se com tudo tornou possível esta construção de realidades desabando o mundo das utopias. Estas performances devem ser mais vistas para que possam comover alguns corações endurecidos e curar alguns zumbis desta civilização contaminada pela cultura superfícial da grande mídia.

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