Esperamos de uma Paixão de Cristo as cenas piedosas já massificadas pela tradição religiosa e sempre se dando dentro da cronologia comumente aceita.
É interessante como às vezes somos colocados diante de algo completamente diferente e puxado por uma lógica não-linear como camadas de multi-universos que se cruzam. É o caso da encenação do Cristo Lampião produzido pelo Coletivo Porta Cênica, na Praça da Paz no Bairro dos Bancários em João Pessoa, no dia 24 de março de 2018, às 21 horas.
Roberto Cartaxo como narrador |
Começamos pelo narrador interpretado pelo ator Roberto Cartaxo; um antigo habitante de uma cidade do interior da Paraíba narra de forma fragmentada a visita de Lampião no dia em que se fazia uma representação da Paixão de Cristo, mas ao mesmo tempo, este narrador, mistura fatos do presente, passado e futuro de forma fragmentária. Isto lembra a definição do teatro pós-dramático do crítico Hans-Thies Lehmann, que fala sobre a perda da sacralidade do texto dramático dando lugar a um roteiro fragmentado e atravessado por elementos de outras linguagens artísticas. Este modo fragmentado alude à nossa civilização que vive de pequenos pedaços de informação e mistura completamente todas as coisas.
Encenação na Praça da Paz |
Se olharmos para esta obra com estes olhar da fragmentação da alma das pessoas nestes anos que agora vivemos, percebemos que se trata de algo revelador; somos uma sociedade de cacos de coisas, de pós-verdades, de mentiras que se aceitam para fazer a perseguição de pessoas com finalidades políticas, como é o caso da perseguição judicial-midiática ao ex-presidente Lula. Estamos numa sociedade do espetáculo onde o que importa é o efeito espetacular e não a verdade dos fatos. O Cristo-Lampião, termina em sua visão pós- dramática por costurar todas estas realidades e sua crueldade.
Jô Costa, Gisele Suminski, Edilza Detmering, Nyldete Xavier |
O interessante é que no espetáculo Lampião e Jesus, foram pessoas completamente fora da lei, cada qual em sua época. Jesus foi ressuscitado dos mortos para reinar ao lado de Deus. Lampião foi endeusado e trazido pela cultura do povo pobre do nordeste como um herói, que desceu ao inferno e foi retirado de lá pela dor comum de todos os que foram vitimas da justiça falível dos donos do poder. Essa elite de poderosos continuará habitando a lama, enquanto os heróis ascenderam ao céu, Jesus indo para o seu trono e Lampião indo para a memória popular.
Os grandes temas da exploração do povo brasileiro e nordestino estão presentes e personificados numa simbiose de personagens históricos do estado da Paraíba, dos evangelhos e do Brasil. A encenação valoriza este aspecto da luta de classes dentro de uma sociedade dominada por meios de comunicação comprometidos com a escravização do povo para a manutenção dos privilégios de uma elite, que tal como os nobres da época colonial, moram no brasil com o coração na metrópole. Antes era portugal. Agora é os Estados Unidos da América do Norte. É a mesma elite de nobres cujos títulos nobiliárquicos foram construídos em cima da miséria do povo.
Nathanael Alves, Julia Oliveira, Kaline Brito |
O Cristo-Lampião foi para a praça em um dia muito movimentado, mas apesar das dificuldades técnicas e climáticas, pois faltou som, a iluminação não funcionou, choveu forte por duas vezes. Mesmo assim o publico permaneceu junto aos atores e atrizes durante quase duas horas de encenação, se emocionando e curtindo aquele ato de resistência cultural.
Não houve no espetáculo nenhuma referencia direta à política dos dias de hoje. A grande metáfora, no entanto, foi completamente assimilada. A transposição do rio São Francisco, foi lembrada como algo ligado a ressurreição de Jesus, pois para o povo nordestino esta chegada das águas tem o valor de uma nova vida.
O espetáculo lembra que aqueles que lutam pelo povo se mantém vivos e são fortes a cada dia que passa. A encenação teve o mérito de usar um elenco competente e enxuto que demonstrou muita garra para enfrentar as adversidades. O Cristo-Lampião demonstrou também como no imaginário popular é feita a ressurreição dos heróis. Apesar dos paralelos a Cristo, o mesmo não é substituído por lampião, cada qual continua com o seu lugar na mente do sertanejo explorado pela sanha destruidora dos coronéis ricos e egoístas.
Denis Almeida, Maria Betânia |
Nem lampião nem cristo, contaram com a justiça dos homens, apenas com o ódio. Vemos que o ódio é a característica fundamental daqueles que exploram o povo pobre. Estes mesmo que fazem do ódio a sua profissão de fé, por outro lado, são os que vivem a promover a própria santidade, de um lado são ratos de igreja, do outro demônios devoradores de direitos dos mais pobres e oprimidos.
Este espetáculo aconteceu num momento delicado da nação brasileira, que está completamente aviltada em suas dignidade. Vimos na praça os figurinos todos muito coloridos aludindo-se ao sonho, uma trilha sonora rica em descrição das emoções associadas a luta do povo.
O texto é de Marcelo Félix. A direção de Kaline Brito. No elenco: Roberto Cartaxo; Denis Almeida; Maria Betânia; Nyldete Xavier; Bruno Fonseca; Jô Costa; Edilza Detmering; Julia Oliveira; Michele Souza; Gisele Suminski; Nathanael Alves Filho; Fernando Cabrera; Erik Albuquerque; Willian Santos. Cenografia de Roberto Cartaxo; Cenotécnica de Francisco Régis; Músicas de Mestre Fuba e Nyldete Xavier.
1 comment:
Agradecer imensamente o texto de reflexão crítica que não canso de ler me ajudando a melhorar os próximos textos teatrais.
Post a Comment