Sunday, October 22, 2017

FUZUÊ

Sempre que imaginamos o teatro grego com a sua exuberância de milhares de espectadores, fazendo parte da vida sensível da comunidade assim como as outras necessidades básicas: comer, dormir, amar e ser amado.

Ficamos emocionados quando vemos que esta coisa chamada teatro, às vezes tão difícil de definir, se é um lugar ou um acontecimento, não importa. Esta coisa que faz parte das entranhas humanas, é algo essencial ao ser humano em sociedade. Nós pudemos ver isso na realização da Aldeia SESC em João Pessoa,de 14 a 21 de outubro de 2017, com os espetáculos que ocuparam o centenário Theatro Santa Roza e o tradicional Parque Solon de Lucena, ora apelidado pelos atuais gestores municipais, de Parque Nova Lagoa, que seja. Esses lugares serviram como palco de uma belíssima ação cultural que tanto bem faz a cidade.

No último sábado, 21 de outubro, às 15 horas e 30 minutos, vimos como um espetáculo de rua da Companhia de Teatro Encena encantou um público transeunte, mas que atraídos pela oportunidade de compartilhar da grande riqueza humana, ajuntou-se no circulo fundamental das artes cênicas para participar do espetáculo Fuzuê, texto de Celly de Freitas e direção de Ingrid Trigueiro.

Fuzuê arranchou-se debaixo de uma arvore centenária, pendurou lá o seu estandarte e convidou a platéia para construir juntos uma estória e participar diretamente indo para a cena sempre que eram solicitados.

Operou-se a magia do contar juntos uma estória, entrando-se nela através de personagens, sem o menor constrangimento, cada qual se entregando de coração limpo sem qualquer censura. Este jogo teatral muito bem executado pela Companhia de Teatro Encena trouxe para a praça temas antigos de amor e revelações acerca da vida secreta das pessoas.

O ambiente era tão descontraído que em determinado momento começou a chuviscar um pouco, mas as pessoas não arredaram o pé, abriram-se alguns guarda-chuvas. A chuva foi aumentando e correram todos, platéia e personagens, para debaixo da árvore, e então aconteceu um fato inusitado entre os artistas e a platéia: eles continuaram o jogo teatral com um texto que ia surgindo no entendimento de algumas conversas mais intimas com as personagens. O público não perdeu o fio do jogo e de certo modo até exigiu que o teatro continuasse esperando a chuva passar. Por sorte, o tempo melhorou e foram todos de volta para a roda dando continuidade ao evento.

Em alguns momentos o publico acompanhava o bordão de uma das personagens interpretada pela atriz Gigliola Melo: “namorar, namorar, namorar, beijar, beijar, beijar”. Este modo de comunicação teatral foi possível graças a um tipo de intimidade que algumas grupos de teatro sabem estabelecer sem o uso de microfones ou qualquer recurso tecnológico. A adoção, pelo público, do espetáculo como sendo seu, deveu-se ao fato de o mesmo não ter qualquer elemento que distanciasse as pessoas, a voz dos atores tinha a mesma intensidade dos espectadores; então, todos se esforçavam para participar, realizando algo muito precioso na arte do teatro: o silencio.

O silencio é uma das coisas mais difíceis de realizar, ele pode ser forçado, ou até mesmo obtido na marra através de amplificação das vozes dos atores, ou das regras rígidas dos teatros convencionais. Foi bonito ver a capacidade de obter isso do público por cumplicidade, pelo acordo intimo de construir o espetáculo. Lembrando que tanto atores quanto espectadores precisam jogar bem o jogo do silencio, tendo cada um a sua vez.

Fuzuê conseguiu obter silêncio em meio a um ambiente caótico, vizinho a um terminal de ônibus coletivo com a sua movimentação constante. Apesar das dificuldades, não foi feita qualquer exigência ao público, e todos construíram ao redor do espetáculo a sua redoma mágica, onde ali todos podiam se teletransportar para o mundo do teatro. Muito interessante o modo como esta Companhia conduziu ludicamente o público trazendo para cada espectador o seu potencial criativo.

A sonoplastia foi executada ao vivo por Celly de Freitas e Ingrid Trigueiro sem se preocuparem com o entorno barulhento. Ao final não lembramos das interferências, mas daquele universo especial criado pelo grupo. Há que se destacar a segurança de todos e o carinho como interagiam com a platéia Aelson Felinto, Silvana Pequeno e Gigliola Melo.

É uma equipe afinada, sem arrogância, transpirando a experiência dos milênios da arte do teatro como se tivessem reconectado com a a antiga tradição e, conseguiram isso de modo tão espontâneo que se incorporaram à vida dos espectadores, recuperando as tradições de todas as ruas e lugares do mundo por onde passaram trupes de artistas encantando as multidões.

Ao ver Fuzuê saímos acreditando na força da arte para vencer os tempos hediondos de barbárie, que estamos vivendo nas mãos de pessoas maldosas, que tem feito regredir a civilização brasileira á idade média. Viva o teatro brasileiro e viva o Sesc.

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