Concedi esta entrevista em um momento relaxado, sem qualquer preocupação com qualquer formalidade. Depois os dois repórteres,Arthur Morais e Jessica Sales, me mandaram o texto transcrito e tomei um susto com a informalidade na qual tinha deixado fluir as minhas confidências. Geralmente se faz uma "auto encenação", termo usado pelo Prof. Bertrand Lira para se referir como os entrevistados representam para a imprensa um papel dando certa impostação às suas declarações. Na minha entrevista me esqueci completamente da formalidade; falei solto enquanto tomava café.
A entrevista foi publicada na excelente Revista Digital Bitola-8 , que foi um Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba sob a orientação do Professor Pedro Nunes.
Resolvi compartilhar a entrevista como estava, crua e verdadeira, revelando aspectos de mim que ainda não havia me dado conta e também para desnudar-me completamente de qualquer pretensão de importância. Segue abaixo a transcrição completa:
ENTREVISTA com Everaldo
Vasconcelos
realizada por Arthur Morais e Jéssica Sales
-
Com a criação do NUDOC o que mudou no cenário cinematográfico na Paraíba?
É
interessante conhecer a obra do Wills Leal, Cinema na Paraíba, que
conta a história do cinema paraibano em dois volumes. Nessa obra,
Wills contextualiza como foi o surgimento do Núcleo de Documentação
Cinematográfica da UFPB naquele momento político cultural. Também
tem o trabalho muito interessante de Pedro Nunes e de João de Lima,
que aprofundam a pesquisa acerca deste tema.
A
minha geração começou a fazer cinema praticamente com o NUDOC e
através dele tomou conhecimento do cinema paraibano que existia,
tanto que alguns de nossos professores foram cineastas que
participaram daquele ciclo de cinema iniciado na década de 1960:
Manfredo Caldas, Manoel Clemente, Pedro Santos. Teve também
Linduarte Noronha, só que Linduarte não estava propriamente no
NUDOC, mas era professor no curso de comunicação e nós assistíamos
às suas aulas.
O
NUDOC, de fato, foi como uma espécie de rito de passagem do bastão,
ele serviu muito para que pudéssemos ver todos os filmes do ciclo de
cinema iniciado na Paraíba. Nós vimos todos os filmes de Vladimir
Carvalho disponíveis na época, filmes de Jurandir Moura, filmes do
Linduarte Noronha, Ipojuca Pontes, filmes de outros ciclos. Lembro
também de um filme Alex Santos, O Coqueiro. Machado Bittencourt,
que tem uma filmografia importante. Ele fundou em Campina Grande a
Cinética Filmes, um estúdio e um laboratório, e inventou
equipamentos para revelar e copiar filmes. Um pioneiro que criou, um
laboratório independente, que não precisava mandar revelar os
filmes no Rio de Janeiro, fazia todo processo aqui.
Foi
através do NUDOC que nós entramos em contato com toda essa geração
que fez o cinema paraibano aparecer, o NUDOC não teria sido possível
se não tivesse havido essa geração anterior. Às vezes, as pessoas
colocam o NUDOC como algo separado da história do cinema na Paraíba,
como se fosse uma coisa que surgiu em um instante mágico, e ao
contrário, o NUDOC, somente foi possível por causa dessa geração
de cinema que, se aproveitando de uma ocasião histórica aqui, que
foi a realização de uma jornada de cinema, no qual o reitor Linaldo
Cavalcanti tornou possível um convênio com a França, através de
Jean Rouch, para que fosse realizado um curso com o ateliê de cinema
direto Varan de Paris.
Toda
a minha geração que circulou pelo NUDOC, fez os cursos, na verdade
receberam esse bastão porque nossos professores, de fato, lutaram
pela implantação do NUDOC. Pedro Santos, músico, compositor, um
dos grandes educadores de cinema, vindo do movimento cineclubistas,
foi uma das grandes figuras articuladoras do Núcleo.
O
NUDOC foi então essa passagem de bastão. Daí, que essa geração
que gravitou em torno do Núcleo, direta ou indiretamente, é aquela
que levou adiante o sonho de fazer cinema. Eles não foram apenas
fruto de uma oficina da Varan no cinema direto, eles, de fato, foram
pessoas que viram todo o cinema paraibano que tinha sido produzido e
tiveram como professores aqueles cineastas. Daí você, tem Marcus
Vilar, Torquato Joel, Bertrand Lira, que surgiram disso. Houve,
paralelo ao NUDOC, outros movimentos de cinema, mas ainda bebendo
dessa força, dessa pujança das coisas que ocorriam, é tanto que se
faziam muito brinquedo entre o cinema direto e o cinema indireto, e
não deixava de ter uma referência do que estava acontecendo no
NUDOC.
-
Você participou no Curso de Cinema Direto na Paraíba?
Participei
de todos eles.
-
Havia divergência em relação ao Cinema Direto?
Havia
algumas coisas que já foram bastante discutidas em trabalhos
acadêmicos e filmes documentários sobre este tema. A formação
cinematográfica no NUDOC era muito rígida através dos ateliês de
formação; tinha um modo de ensinar cinema muito apegado à questão
técnica, à questão histórica e ao compromisso social do cinema.
Então, isso fazia com que houvesse determinadas divergências.
Algumas pessoas achavam que o cinema poderia ser alguma coisa mais
experimental, que pudesse se experimentar uma série de outras coisas
e os nossos professores eram bastante rígidos.
Lembro-me
demais de Pedro Santos nos dando altas reprimendas porque a gente
ficava, às vezes, voando com a teoria e ele dizia: “não, não
pode ir por aí, porque a semiótica do cinema vem por aqui, a teoria
é essa, as coisas são essas, a crítica é essa, a teoria da
montagem é essa, as teorias da montagem ideológicas são essas, é
assim, isso, isso, e tal...”. A gente viu todos os principais
filmes da história do cinema em 16mm, em uma sala de cinema. Isso dá
para ter uma idéia do que é ter uma formação dessas.
Havia
alguns grupos que se contrapunham a esse processo tão rígido de
formação cinematográfica, mas pelos frutos que essa formação
deu, eu acredito que foi muito correto.
-
O Curso de Cinema Direto limitava a escolha dos temas?
Não.
Nunca houve nenhuma censura a qualquer tema. Há filmes de todos os
lados, de todas as cores, de todos os temas possíveis e imagináveis.
Filmes que abordavam desde situações familiares, como meu próprio
filme “A Sagrada família”, que tinha uma abordagem muito pessoal
e muito familiar. Eu apliquei no cinema o processo de lavagem de
roupa suja de minha própria casa, um processo de auto-analise
psicanalíticas.
Há
filmes que abordavam a questão da terra, há filmes que abordavam a
questão das artes, filmes que abordavam as questões da
homossexualidade, filmes que abordavam questões religiosas ou dos
menores abandonados, questões do sertão, da seca. Não havia uma
limitação de temática para nenhuma direção, o que havia era uma
questão de proposta antropológica.
Um
modo de abordagem que o cinema direto propunha era você ter uma
personagem e dar voz a ela, porque um dos princípios do filme
etnográfico é que você dá voz a quem não tem essa voz, então o
filme torna protagonista aquele que é dono de sua história. Não
sou eu que chego com minha câmera e meu filme e faço um
documentário sobre o que eu penso que deve ser aquela pessoa – o
documentário tradicional faz muito isso, é uma leitura que o
cineasta faz do outro – e o filme etnográfico é o contrário, nós
damos voz ao outro, o filme é ele.
-
Havia preconceito com o super-8?
Com
relação a geração anterior tinha, muito, porque, na verdade, a
bitola de cinema mesmo era a de 35mm, a bitola profissional de
cinema. Então, quando você fazia um projeto para 16mm, já era um
projeto considerado pela metade do caminho, porque você estava
trabalhando com a metade da bitola do cinema profissional e trabalhar
com o super-8 era trabalhar com um quarto da bitola de 35mm, era algo
menor ainda, quase como um brinquedo. Na verdade, a câmera de
supér-8 era um brinquedo que os pais compravam para gravar as
férias, os almoços de família, coisas desse tipo, como hoje as
câmeras de celular que fazem isso.
Quem
vai conferir esse status à câmera de super-8 é principalmente o
Jean Rouch através de cinema etnográfico. É o cinema antropológico
quem vai transformar uma câmera de super-8 numa arma poderosíssima,
porque ela continha no seu próprio equipamento o som e a imagem.
Você não imagina o que significa isso hoje, porque existem
celulares como esse aqui que grava em 4k.
Na
época você tinha um equipamento que não precisava de um gravador
atrelado de lado para poder gravar as coisas. Num filme em 16mm que
eu fiz era um carnaval, porque eu tinha uma câmera, um gravador que
tinha que ficar pregado de lado, a equipe era uma maravilha, ficava
correndo atrás das coisas e ainda ligado para bater o ‘sincro’
com a câmera, imagina o rolo?!
E
ainda eram equipamentos legais, porque às vezes, em determinados
equipamentos, por exemplo, quando começou a existir o VHS, a câmera
era uma e o gravador da imagem era outro. A câmera super-8 era um
verdadeiro milagre tecnológico, oferecia liberdade e uma qualidade
muito boa, porque se eu filmasse em kodachrome, uma película muito
boa, com a luz do dia e com o filtro adequado, obteria um tipo de
definição de imagem, com um tipo de granulação que me garantia
uma coisa muito boa quando projetava em telas maiores. Mas já
existia, por exemplo, o ektachrome, um outro tipo de película, se
eu filmasse com o ektachrome, ele dava para gente um tipo de
granulação que era bacana para fazer efeito, mas às vezes, possuía
um grão muito grosso do filme, as películas antigas possuíam
diferenças de uma para outra. Variavam não só em relação a
questão do modo de obter a cor, mas também na quantidade de grãos,
no modo como ela se dividia quimicamente para produzir as diferenças,
as singularidades.
É
claro que não tínhamos essa qualidade toda em relação a gravar em
35mm, mas, às vezes, você obtinha coisas muito boas em super-8, uma
boa câmera filmando em kodachrome com luz do dia era uma imagem
perfeita. Agora, filmes em kodachrome com luz artificial, a gente já
ficava por ali. O ektachrome era um tipo de película ruim. Aí
tinham as películas da Fuji, a películas agfa color...
A
vantagem de a minha geração trabalhar com o super-8 foi nós
aprendemos coisas que, talvez, a geração que trabalhou com 35mm não
tenha aprendido. Aprendemos a química do filme, por exemplo, o que
significava você ter um tipo de películas, a luz, os filtros, todos
os recursos tecnológicos que você tinha que ter para dominar a
química da fita que estava usando.
Terminou
sendo um tipo de aprendizagem muito interessante, mas, de fato, houve
um preconceito muito grande, muito, muito grande. Apesar de que, se
você lembrar, Almodóvar, os primeiros filmes dele, inclusive que
ele fez circular, foram filmados, fotografados em super-8. Até hoje
existem festivais em super-8 fora do Brasil, na Europa e nos Estados
Unidos. É uma bitola que continua sendo usada e é muito legal.
No
Brasil não ocorre porque a gente é nicho de mercado, então na hora
que acabou o nicho do super-8, começaram a chegar as câmeras em
VHS e praticamente morreu o super-8 no Brasil. Para você filmar em
super-8 no país é um carnaval porque você tem que comprar fora,
mandar revelar fora e, quer dizer, se tornou inviável trabalhar com
película super-8 no Brasil. Aliás, está ficando inviável
trabalhar com película no Brasil, hoje é mais barato trabalhar com
o 4k, quase todo cinema brasileiro hoje é digital, mesmo que eu faça
cópias, transfer
e copie tudo para película para participar de alguns festivais, mas
hoje quase todos os filmes estão sendo feitos digital no Brasil, por
causa da questão do custo.
-
Durante o Terceiro Ciclo de Cinema, onde os filmes produzidos eram exibidos? Haviam festivais, cineclubes ou circuitos cinematográficos?
Eram
nos festivais, cineclubes... Aonde dava e quando a polícia deixava
também, porque algumas vezes, em exibições de festivais que a
gente organizou aqui, saímos da sala de exibição com a polícia
federal correndo atrás da gente.
-
Algum filme seu foi censurado na época?
Não,
a polícia federal não censurava os filmes, censurava a gente
(risos). Ela ameaçava os cineastas. Numa das noites, uma vez,
estávamos exibindo filmes na antiga reitoria, que hoje é o INSS,
estava tendo exibição de filme lá e a polícia federal chegou para
impedir e a gente reagiu ao policial, estávamos eu, João de Lima e
Pedro Nunes. Eu e João de Lima saímos para levarmos a notícia e
vermos se passava por telex para o pessoal do Correio Brasiliense e
para Folha de São Paulo e, nesse meio tempo, a polícia chegou,
inclusive para levar a mim e ao João porque a gente tinha afrontado
o policial. Encaramo-lo, dissemos umas verdades e como o policial
federal é deus, você deve imaginar que ele voltou com metralhadoras
e ameaçou as pessoas, ameaçou professores que estavam lá.
Se
ele tivesse pegado nós dois, estaríamos ferrados, não pegou porque
a gente estava no jornal, na máquina de telex. Conseguimos mandar
para folha de São Paulo, Jornal do Brasil e Correio Brasiliense. No
dia seguinte, saiu uma notinha, pequenininha avisando que a polícia
federal havia invadido o festival.
-
Porque existia essa perseguição com os cineastas daqui?
Porque
toda ditadura odeia os artistas, odeia os cineastas, odeia a cultura,
odeia a liberdade de expressão e a polícia federal sempre foi algo
muito, muito, muito cruel com a cultura brasileira. Eles têm uma
dívida imensa com o Brasil, eles deveriam se comportar melhor e não
estão fazendo isso atualmente, inclusive. Eles deveriam se culpar
para limparem as almas, porque são pessoas que se dedicaram a
censurar a cultura e a perseguir politicamente os artistas, não tem
explicação para eles interromperem uma mostra de cinema feita por
estudantes, com filmes que são basicamente de natureza
antropológica. Acho que a Policia Federal deveria incluir a
disciplina de Arte no currículo de formação de seus membros com
aulas teóricas e práticas.
-
Na época que foi realizada a mostra de cinema estava em cartaz nos cinemas daqui, nas salas comerciais, filmes como: Vida e Gloria de uma Prostituta, Fêmea do Mar-pornográfico, entre outros. Como esses filmes, mesmo com temática sexual, conseguiam passar pelo crivo da censura e Mostra de vocês foi censura?
Para
eles a pornografia era importante porque você canalizava toda uma
inquietação popular ou qualquer coisa que houvesse para o lado da
sexualidade. Qualquer ditadura fala em nome da moralidade, se diz
contra a corrupção, mas no fundo são os mais corruptos, são os
mais pornográficos.
O
que ocorre é que a pornografia não era chocante para eles, porque
não atentava contra o poder deles, o que atentava era um grupo de
estudantes querendo falar, se expressar livremente. A pornochanchada
no Brasil, inclusive, prosperou durante a ditadura militar, você via
todos os cinemas lotados de produções pornográficas e eróticas e
não havia censura alguma nisso. Era plenamente aceito, no entanto,
era proibido qualquer outro tipo de manifestação inteligente.
-
Então, você poderia assistir o pornochanchada, mas não poderia discutir sobre sexualidade...
Você
não poderia discutir sobre sexualidade livremente. Faz parte da
hipocrisia da sociedade, agora mesmo nessa crise política que
estamos vivendo, as pessoas querendo dar um golpe de estado
parlamentar na presidenta Dilma Rousseff, claramente um golpe, o
mundo todo se manifestando, e eu tive a oportunidade de conhecer
alguns colegas que me mostraram no WhatsApp deles alguns vídeos, e a
política era misturada com as mulheres gostosas, a pornografia
misturada no meio da política. Eu até brinquei com eles, disse:
“interessante você fazendo campanha contra a corrupção, os
costumes e não sei o quê, no entanto, o grupo de vocês que apóia
esse impeachment, é um grupo altamente pornográfico”, e ele
brincou comigo e disse assim: “ah, mas isso é só para diversão.
Basicamente essa hipocrisia existe em todos os tempos, o fato é que
o cinema incomoda quando você vai lá e diz as coisas que têm que
ser ditas, o teatro incomoda, a literatura incomoda, os intelectuais
incomodam porque pensam e eles não querem que você pense, querem
que você seja apenas uma das criaturas da boiada.
-
... então, quando a sexualidade era discutida de forma mais acadêmica, isso incomodava.
Incomoda
até hoje, você chama uma discussão dessas e as pessoas ficam
incomodadas: por que? Porque, na verdade, nos bastidores, elas têm
um tipo de comportamento, mas diante da sociedade, outro
comportamento.
Uma
das coisas boas de você ser um artista, eu sou um artista de teatro
também, é que a gente tem uma vida muito noturna, por causa dos
ensaios e tudo, ensaiamos muito à noite, então vemos muitas coisas
que ocorrem à noite, até porque muitas vezes – hoje eu não faço
tanto isso, mas alguns colegas mais jovens continuam fazendo –,
saíamos para tomar uma cervejinhas e encontrávamos pessoas da
grande moralidade nos lugares que a gente ia tomar a cerveja, que
eram os cabarés de João Pessoa, porque estavam abertos. Chegávamos
lá e estavam os senhores da moralidade, nos fazíamos de invisíveis,
mas isso é muito comum, essa dupla personalidade dessas pessoas e
não é uma coisa só do Brasil, essa hipocrisia é generalizada.
Quando você vê um cara falando muito de moral, vá atrás que a
coisa é feia. O que é complicado é que eles atacam os artistas, os
cineastas. Atacam com ferocidade: É tanto que uma pessoa me mandou
um e-mail, recentemente, dizendo que a culpa toda da corrupção no
Brasil era dos professores e dos artistas.
-
Trazendo um pouco para hoje em dia, a gente vê que a grande mídia está apoiando o golpe, o impeachment da presidenta Dilma. Naquela época, como a imprensa se comportava?
Você
tem que entender o seguinte, a grande imprensa quando apoiou o golpe
de 64, toda essa grande imprensa, a Folha de São Paulo – a Globo
não, porque a Globo era uma organização que continuou no poder –
quando eles tomam o poder, alguns setores são colocados à margem.
O que aconteceu foi que alguns setores da imprensa começaram a
sofrer censura, enquanto outros não sofriam censura nenhuma. O
Globo, por exemplo, foi tranquilo, cresceu e se desenvolveu
totalmente, mas a Folha de São Paulo sofreu bastante, mesmo tendo
apoiado o golpe, apoiou o golpe militar e depois foi para a macaca.
Haviam
alguns jornais que obviamente mantinham essa cobertura mentirosa,
tentavam falsear, mas haviam jornais que já tinham sido
marginalizados Por exemplo, a gente denunciou as coisas que estavam
acontecendo aqui em alguns jornais do Brasil e eles deram destaque,
colocaram a publicação lá, se você for atrás um pouquinho na
história, esses grupos tinham apoiado, mas logo depois entraram pelo
cano.
Foi
o que aconteceu com Carlos Lacerda, um dos conspiradores que botou
João Goulart para baixo, foi um dos caras que lutou pela cassação
dele e pelo golpe militar e logo em seguida ele próprio é cassado e
preso. Acontece muito isso. É porque não tem lugar para todo
mundo, então, o mais forte joga o outro fora. É uma briga de foice.
Haviam
setores da grande mídia que apoiavam o cinema brasileiro, que
apoiavam as causas da luta contra a censura, a Folha de São Paulo
chegava a publicar nas suas páginas receita de bolo, indicando ao
público que aquele material havia sido censurado.
Aqui
tínhamos apoio discretos de alguns jornais que nos davam tijolinhos,
notícias, tudo. Mas havia também colunistas locais que se
alinhavam a uma postura absolutamente predatória contra professores
que vinham dar aula na UFPB e atacavam esses professores,
chamando-os de tudo quanto não presta, do mesmo jeito que você vê
hoje esses famosinhos que estão aí, essas criaturas escrevendo na
Veja, em blogs atacando os artistas e intelectuais, havia a mesma
coisa, só que numa escala menor, porque hoje com as redes sociais,
com a internet, essas coisas se multiplicam com uma força muito
maior.
Vocês
estão podendo assistir hoje algo muito parecido e talvez se as
coisas continuarem a dar as conseqüências para adiante, talvez a
gente chegue a assistir a censura materializada. Censura de
espetáculos já começou, eles invocam a lei, o juiz dá uma
liminar, a liminar não tem fundamento, mas o cara de qualquer forma
dá e para você derrubar uma decisão dessas você tem que recorrer
e o espetáculo tem hora para acontecer, então... funcionou como uma
censura.
Havia
apoio de determinados setores e havia, por outro lado, a perseguição,
através de colunistas nos jornais que pegavam pesado, atacavam de
forma pesada as produções, por exemplo, de Pedro Nunes. Houve
ataques pesadíssimos ao Pedro NUnes, por causa do filme Closes, que
é um filme da época, não era do NUDOC, mas foi feito naquela mesma
circunstância e foi um filme muito chocante que sofreu uma censura e
uma perseguição muito grande.
Eu
acho que a gente tem que lutar com isso mesmo, a história da
humanidade é essa mesmo, a gente vai continuar fazendo filmes, vão
existir períodos de relativa liberdade e vão existir períodos em
que esses malucos fundamentalistas aparecem, porque eles não morrem,
ficam embaixo da terra esperando a hora de surgirem com a sua
maldição zumbi, aí eles vêm contaminam os outros que
transformam-se em zumbis... A melhor metáfora para isso que tem no
mundo hoje é “The Walking Dead”, porque é como um zumbi, esses
fascistas aparecem, contaminam os outros e as pessoas se tornam
zumbis deles sem saber o porquê. Aí passa um tempo, melhora aquela
crise do vírus zumbi, mas daqui a pouco aparece de novo, a gente tem
que aprender com isso, quer dizer, se preparar sempre para isso,
através da reflexão e não perder a esperança de melhores dias
para a humanidade e não deixar de fazer arte. A arte é aquilo
capaz de curar o coração humano, através na arte você pode educar
a humanidade, educar a sensibilidade.
-
Realizamos entrevistas com outros cineastas que produziram em super-8 na Paraíba e a maioria deles citou seu filme “A Sagrada Família” como uma referência no período, por ser inovador. Você pode falar um pouco desse filme?
Esse
filme foi o encerramento da oficina, do primeiro curso que eu fiz da
Varan aqui, e eu aproveitei uma situação pessoal, na verdade, uma
situação que eu vivia dentro de casa com meu pai alcoólatra. Era
uma situação muito difícil e eu não tinha como retrabalhar isso
e, na época, fiz muitas leituras, havia cursado algumas disciplinas
de psicologia aqui [UFPB] e tive acesso à obra de Freud. Através
dessas obras eu comecei a entender alguns mecanismos psíquicos das
pessoas. O filme “A Sagrada Família” foi um modo que eu
encontrei de recuperar a imagem do meu pai e de curá-lo dentro de
mim.
Se
você assistir ao filme, verá que ele começa com meu pai chegando
em casa, embriagado e vai conduzindo a embriaguez dele, até o
momento em que o filme vira e aparece uma imagem que é ele varrendo,
como se ele varresse aquilo tudo, e aí a família é completamente
outra, as pessoas estão organizadas, conversam, dão depoimentos
sobre a vida, sobre as perspectivas e tudo. É uma estrutura que eu
trabalhei muito em cima de um conto, uma novela conhecida, chama-se
“O médico e o monstro”, que é o doutor Jekyll e o doutor Hyde,
o homem bom e o homem mau que existe dentro de cada pessoa, e a
estrutura do “Sagrada Família” é uma estrutura do duplo, em que
você começa com o mau, com o monstro, o alcoólatra que perturbava
toda família, mas ele se transforma num homem bom. Através da
“Sagrada Família” eu consegui recuperar em mim mesmo o amor de
meu pai, porque a história triste era se eu tivesse começado com
ele bonzinho e terminasse com ele monstro, mas o que eu fiz no filme
foi: através do cinema direto, elegi ele como personagem para
mostrar que aquele homem que se figurava mau naquele sentimento, era
um homem bom e eu acho que o filme terminou sendo profético porque
anos depois ele deixou a bebida, venceu o alcoolismo e foi muito
importante ter feito isso, ter construído isso através do cinema.
Na
época eu pensei muito “rapaz, vou fazer um negócio desses?!”,
mas no fundo os artistas têm que saber de uma coisa: você já está
em carne viva mesmo, não precisa mais esconder porra nenhuma, a pele
já está toda arrancada, então.... Eu não aconselharia outra
pessoa a fazer, acho que isso fica para os artistas que podem lidar
com esse tipo de profundidade da emoção e transformar suas emoções
e a sua própria vida em algo icônico para experiência das outras
pessoas, que sirvam também para que os outros reflitam. “A
Sagrada Família” tem essa característica, mas o título não fui
eu que dei. Quando terminei o filme, não sabia que título dar.
Lembrava
também o conto da “Bela e a Fera”, só que era a “Bela e Fera”
de uma certa forma na mesma estrutura do “Médico e o Monstro”,
do Stevenson – que era o escritor inglês –, e aí tem um filme
do Jean Cocteau, a Bela e a Fera, que me impressionava muito, uma
produção em preto e branco, um filme muito místico. E aí eu
trabalhei com essas questões, quer dizer, dentro da estrutura do
filme. Se você assistir ao filme bem direitinho de novo, vai
perceber claramente a estrutura dele, o modo como ele está armado, o
modo como ele começa, como separa os momentos e como constrói a
cura.
A
última imagem do filme, que é a minha avó, ela está com uma faca
sentada num batente e ela balança a faca, a imagem é toda azulada,
e toca a “Polonaise
Militar” do Chopin, a única música que tem no filme. Aliás, só
tem duas músicas, uma que é “Let
it Be”, que
eu botei para tocar na hora que era o meu irmão, ele está sentado
na cama e diz “não, não quero falar” e a câmera caminha e tem
uma metralhadora desenhada no espelho da cama e toca “Let
it Be”, que
é o “deixar estar”. Foi uma construção muito bem pensada,
apesar da situação, mas foi bem calculada para que as coisas todas
pudessem ter aquela construção narrativa que eu consegui. Também
tem uma coisa importante: o movimento de psiquiatria chamado
antipsiquiatria de David Cooper, com os livros: A gramática da vida”
e “A morte da família”. Essas duas leituras junto com as
leituras de Freud, o filme de Cocteau, “A bela e fera e, o livro do
Stevenson, me ajudaram a conceber a estruturação do duplo na pessoa
humana de meu pai e, uma permissão, que acreditava, que se eu
curasse aquilo através do cinema, eu me curaria.
De
fato, aconteceu isso, toda minha raiva transformou-se em algo bom, em
compaixão, quando eu comecei a entender a coisa, a estrutura veio e
fiz o filme, montei o filme. Terminou se tornando uma produção
estranha porque enquanto todo mundo fez filmes sobre outras coisas,
eu fiz um filme sobre algo que me perturbava profundamente. A arte
termina sendo assim, a gente termina enfrentando coisas que nos
perturbam profundamente e você tenta encontrar respostas para isso e
quando eu procuro encontrar essas respostas, termino ajudando outras
pessoas a encontrarem suas respostas. Ficaria muito feliz se “A
Sagrada Família” ensinasse outras pessoas a perdoarem os seus pais
ou outras pessoas da família, que num primeiro momento têm,
aparentemente, sidos muito maus, ensinar que mesmo quando são muito
maus, eles podem ser muito bons, se você consegue encontrar o
caminho de cura para ele em você mesmo. Isso foi o que aconteceu com
meu pai, não por causa do filme, mas de uma certa forma com o tempo
ele mudou e foi muito legal.
Agora,
é claro, não deixa de ser chocante, algumas pessoas me questionaram
isso: “você filmou seu pai, não sei o quê...” e eu disse:
“rapaz, acho muito mais prático fazer isso e tentar me recuperar
através desse amor e demonstrar isso num filme onde eu termino
mostrando o meu pai poeta recitando um soneto, feliz, num ambiente
bucólico construindo algo positivo, do que eu, por exemplo, ficar
com a minha vida toda magoada, cheio de trauma e considerando meu pai
um monstro pelo resto da vida”. Então é melhor encarar logo e
lavar a roupa suja diante das pessoas, como os cristãos antigos
faziam, o pecado nosso é esse aqui, vamos nos purgar logo.
Sei
que realmente é algo que só artistas podem fazer porque geralmente
uma pessoa que não lide com a arte não vai ter ferramentas para
canalizar essa energia, pronto, isso é freudiano, chama-se
sublimação. Eu peguei toda energia psíquica e sublimei através de
uma obra que constrói a transformação de uma situação má, numa
situação boa, é isso que é o “Sagrada Família.
Quem
deu o título foi Pedro Santos, ele viu o filme e disse “qual o
título?” e eu pensando no filme do Jean Cocteau, digo: “Pedro,
não sei, não tenho certeza”. A gente tinha que ir para um
festival e o filme não tinha título e ele disse “já sei,
Everaldo, seu filme vai se chamar ‘A Sagrada Família’”, aí eu
falei “tudo bem, ele vai se chamar ‘A Sagrada Família’, mas eu
não vou colocar letreiro – o crédito inicial –, se for o caso
se coloca o crédito final. O filme é um dos poucos do NUDOC que não
tem, no princípio – depois colocaram, mas não é do filme, foi
colocado pelo pessoal para digitalizar, o filme mesmo não tem
letreiro, não tem nada –, ele tinha uma parte explicativa no
final, mas que não era do filme. Eu dizia para Pedro: é muito ruim
você colocar um título numa obra dessas, é como um quadro, já
imaginou? Eu pinto um quadro e coloco um título pregado embaixo da
moldura, a primeira coisa que eu faço é tirar o poder dele, as
possibilidades de leitura que isso tem porque o título é muito
forte, não é? Olha só: “A Sagrada Família”, aí isso já vai
formando ‘sagrada família’ na cabeça, mas o ‘sagrada família’
de Pedro não era o ‘sagrada família’ da história sagrada, é
do livro de Friedrich Engels e Karl Marx, porque Pedro era marxista,
que foi outra coisa que eu questionei com ele: “Pedro você vai
colocar esse título e vai ser pior ainda, vamos ter que colocar uma
bula para explicar para o público que não se trata da ‘Sagrada
Família’ das pinturas que vendem e as pessoas colocam na sala de
jantar, que é outra coisa, aí é mais complicado ainda”. Mas
ninguém perguntou sobre isso e eu pensei: “sabe, deixa para lá!,
porque senão ia ser uma bula mesmo para explicar a tese dele e tal.
Acho que a obra de arte não precisa ter muitos letreiros, ela é o
que é. Este filme ganhou uma importância e uma força que me
assusta porque até hoje tem gente trabalhando com o ele.
É
um filme muito simples, filmado em ektachrome, é todo feito com luz
natural. Em alguns momentos há situações estranhas: Quando estou
dentro de casa, por exemplo, eu dependia de uma fonte de luz forte
fora, então você vê que a câmera procura encontrar uma janela, o
tempo todo estou atrás de uma janela porque quando você está
dentro de um ambiente escuro, trabalhando com ektachrome e –
trabalhar com luz artificial seria triste porque o filme ficaria
muito avermelhado – aí eu tive que calcular. Não existe filme
inocente, todo filme é calculado, ensaiado, mesmo um filme daquele
meio que preparado para ser feito com uma quantidade muito limitada
de película para usar. Quer dizer, deu certo, né?
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