(diário de montagem de CONFISSÕES)
Quando começamos um trabalho de teatro a partir de um texto temos a sensação de que o chão não existe como uma plataforma, mas que estamos abaixo dele, e o texto seria aquela linha que determina os limites do mundo subterrâneo da vida logo acima. Começar um espetáculo é como ser enterrado vivo. É viver a experiência da semente. Gaston Baty, citado por Sábato Magaldi em seu livro Iniciação ao Teatro, fala do texto como este caroço donde podem nascer muitos espetáculos diferentes.
O texto é este estranha gérmen que pode resultar em frutos diferentes a cada vez que é plantado.
Assumimos um texto. Entramos no mundo subterrâneo para buscar os elementos que nos farão vir à tona, precisaremos encontrar nele as forças vitais capazes de motivar o nosso corpo e a nossa alma para se erguerem às alturas. Esta imagem indica por que muitas vezes se obtém resultados pífios. Alguns grupos pegam o texto e somente conseguem ver a sua superfície. Claro, que dependemos da qualidade deste texto, de sua força para impulsionar a criação teatral. Dependerá de cada grupo se o espetáculo que brotar será uma erva rasteira ou uma arvore gigantesca.
Quando falamos de texto teatral, estamos nos referindo aos textos escritos na forma canônica da dramaturgia, mas é possível ter textos literários que servem de mote para este processo criativo, por exemplo, a montagem de Macunaíma de Mario de Andrade que foi encenado por Antunes filho entre os anos 1978 e 1987. E Vau da Sarapalha, conto de de Guimarães Rosa que foi encenado pelo Grupo Piollin sob a direção de Luis Carlos Vasconcelos.
Primeiras leituras
Temos o nosso texto. As Confissões de Paulo Vieira. A tarefa primeira foi fazer leituras do texto sem qualquer pretensão cênica, sem querer traduzi-lo imediatamente para o palco. Inicialmente é preciso entender o que quer o autor. É bem verdade que não é isto que estamos procurando, queremos a alma das personagens, mas entender o que o autor quer e demonstra em sua superfície é muito útil à pesquisa dos atores.
As Confissões revela de saída uma preocupação do autor em colocar a figura histórica de santo Agostinho no canto da parede como se quisesse tomar as contas de seu comportamento na juventude. O autor deixa transparecer a sua indignação e coloca na boca das personagens Miguel e Agostinho falas que numa situação real jamais diriam. Começamos a entender isto, o autor tem uma visão iconoclasta e pessimista. Os atores também questionam muitas coisas em relação aos aspectos religiosos. Mas continuamos na luta textual procurando o que nos interessa: a alma de Miguel e Agostinho.
Segundas leituras
As primeiras leituras vão dando lugar às segundas leituras onde se é possível claramente identificar trechos de falas que não tem a embocadura da personagem. Este conceito de embocadura foi sugerido pelo ator Everaldo pontes, quando repetíamos um trecho e ele dizia , "este texto não tem embocadura, ele não cabe na boca da personagem". Passamos daí por diante a usar este termo para designar a experiência do ator com a personagem através do texto. Nas segundas leituras, o entendimento de cada personagem foi se afinando e a embocadura das falas foi ficando cada vez mais justa.
É importante esclarecer o que significa este fase de estudo do texto, onde acontecem cortes feitos pelo diretor e atores para ajustar o material à embocadura das personagens. Mas esta não é uma tarefa fácil, não se deve cortar os textos apenas porque os atores não conseguem dize-los. Isto é algo comum e que foi popularizado nestes finais de século XX como sendo a tarefa principal do diretor. A coisa ficou tão séria que muitos hoje sequer conseguem dirigir um pequeno esquete sem picotá-lo completamente. Cortar texto de teatro é algo muito sério e somente é feito no contexto de uma montagem para atender aos seus propósitos.
No nosso caso, será possível ver que fizemos a opção pelo diálogo mais ágil que permitisse certa dança cênica na marcação dos atores.
Ainda nas segundas leituras, fomos descobrindo os silêncios que falam e identificando os momentos em que as falas estavam contidas na ação das personagens. Estes trechos que excediam esta qualidade foram suprimidos. Do ponto de vista literário, o autor não teria como transmitir aquelas emoções e estados de alma sem uma narração apropriada contida nas falas, mas o teatro vai além desta necessidade épica e nós optamos pela ação dramática.
Terceiras leituras
Começamos então as terceiras leituras, que foi identificar os movimentos do texto, usando a analogia de uma suíte musical, que é dividida em movimentos, passamos a procurar no texto quando a havia a mudança das atitudes de polarização das personagens determinando uma nova dominante. Este conceito de atitudes de polarização se refere a dominância de uma cena por um tipo de atitude da personagem.
Fizemos as leituras procurando o momento em que a cena mudava de polarização e assim identificamos treze movimentos da ação dramática da peça. Estes movimentos têm cada qual um colorido próprio e devem receber um título descritivo que aponte para atitude de polarização do mesmo. Notem que este trabalho, feito por grupos diferentes com diferentes pretensões cênicas pode resultar em outra subdivisão.
Estes movimentos facilitam o trabalho dos atores e do diretor dando pequenos pedaços que vão se tornar objetivos parciais a serem cumpridos dentro de organograma de montagem. Ao final das terceiras leituras podemos levantar uma agenda detalhada de montagem, com a previsão de ensaios simples, ensaios de afinação, ensaios gerais e estréia. É possível ter um quadro geral do projeto.
Nas terceiras leituras é quando surgem os primeiros elementos de ligação com a cenografia, a concepção de figurinos, a iluminação, a sonoplastia e as tarefas de divulgação.
Quartas leituras
As quartas leituras são o momento em que começamos a luta textual movimento a movimento, indo testar cada palavra, cada sentido. São leituras enfadonhas porque é comum se passar um ensaio inteiro em único movimento. É nesta fase em que o conhecimento da personagens precisa vir apoiado pela pesquisa histórica e levantamento de dados em todas as fontes disponíveis, é o momento em que o choque de mentalidades entre ator e personagem se torna mais evidente. São nestas leituras em os atores dão o salto para compreenderem o mundo através dos olhos daquela personagem, ficando à flor da pele os conflitos entre as suas próprias opiniões e as da personagem.
No nosso caso, por exemplo, surgiu o inevitável combate ao Agostinho que condenava a atividade teatral. Mas cabe ao ator entender as razões de Agostinho. Fica por um lado em nosso espetáculo a posição do ator que interpretava Miguel, Edilson Alves. Miguel era um ator que vai bater-se contra Agostinho questionando-o sobre estas suas opiniões sobre o teatro. Já Edilson tece dificuldades de aceitar a ira de Miguel contra deus. Dizia “eu não concordo com ele”. Mas esta é a tarefa do ator e este é o termômetro de que estamos fazendo bem esta nossa etapa de montagem. Estamos encontrando de verdade Tetê a Tetê estes homens que foram colocados ali um diante do outro pelo dramaturgo. As quartas leituras iniciam a fazer pontes com a ação através do estudo em ação dos movimentos.
Quintas leituras
As quintas leituras sempre são feitas sobre o palco, seja qual for o palco: o tablado do teatro Lima Penante, ou o assoalho da sala de dança. Voltando à imagem da semente que começa o seu trabalho por baixo da terra. Esta terra é simbolicamente o assoalho do palco. É aqui que se começa a nascer para a ação.
Os atores liam o texto se movimentando livremente pelo palco. Isto é feito sem qualquer direção no sentido de estabelecer uma marcação. É uma movimentação livre. Fizemos várias leituras seguidas do texto tão somente se movimentando, sem qualquer regra.
Nas quintas leituras se foi começando a estabelecer os entendimentos das corporalidades das personagens. A cada leitura foi feita uma avaliação e uma pequena conversa sobre os entendimentos do texto que brotaram da simples movimentação. A direção evitou a tentação de começar a marcar o espetáculo determinando entradas ou saídas. Nesta fase de trabalho esgotamos o estudo do texto, nascendo para o palco, que possui uma outra lógica regida pela dramaturgia do ator, algo que brota do seu corpo e voz em ação sobre o palco. Tudo que fizemos foi preparar o caminho que foi da dramaturgia do autor para a dramaturgia do ator.
Um recurso bastante útil foi numerar todas as falas do texto, da mesma forma que numa sinfonia os músicos numeram os compassos. Isto nos ajudou a codificar em momento oportuno a partitura física fazendo as ligações com o texto.
Paralelo a todo este trabalho, deve-se manter a leitura de todas as obras do dramaturgo. Paulo vieira tem uma obra extensa disponibilizada pela internet em sua homepage. É preciso ver onde se situa As confissões no contexto de sua obra literária. Quando montamos um texto estamos fazendo pontes entre os séculos de tradição teatral, recompondo o modo como toda a herança artística chegou até nós, como o dramaturgo se situa na visão dos problemas humanos e como ele se liga à tradição universal.
Durante este processo de estudo do texto fomos também estudando o papel do ator ao longo dos séculos. Tentando compreender a sua existência nos vários momentos da arte teatral. Foi também o momento de relembrarmos porque viemos fazer teatro, como nos aproximamos desta arte. Este nosso texto teatral As confissões, não deixa de ser uma declaração de amor aos atores. Ser ator não é algo para satisfazer a febre de sucesso de muitas pessoas exibicionistas. Hoje já existem meios muitos mais eficazes de promover o exibicionismo através da internet. Ser ator envolve dedicação e estudo. Precisamos retomar o hábito pelo estudo do texto, como elemento de partida inclusive para as experimentações avançadas e fronteiriças do teatro com outras formas artísticas advindas das novas realidades tecnológicas.
NOITE BÊBADA
6 months ago
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