Sunday, April 24, 2011

ATORES: CORPOS VAZIOS E DILATADOS

 (diário de montagem de CONFISSÕES)

Certa vez estava dirigindo os atores Neto Ribeiro e Vladimir Santiago em um espetáculo chamado MARYLIN, que contava a vida de dois transformistas que ganhavam a vida fazendo performances de Marylin Monroe e um deles enlouquece e assume a identidade da diva. Era um espetáculo com muitas coreografias, o que tornava dificil a afinação das cenas, pois nenhum dos atores tinha o corpo preparado para a dança. Trabalhávamos com o coreógrafo Maurício Germano, extremamente exigente, que obrigava os atores a repetirem inúmeras vezes cada frase de movimento. Numa dessas ocasiões, um dos atores parou o ensaio e alegou que era um ser humano e que não iria além daqueles limites. Neste intervalo nós conversamos sobre o que significava aquela defesa dos atores e disse-lhes que eles não eram seres humanos e sim atores, que os humanos comuns iriam sentar-se na platéia para nos ver. Depois disso voltamos aos ensaios até à exaustão.

Os atores não são humanos, no sentido comum que se aplica ao controle dos esforços em busca de uma determinada performance. Os atores são atletas afetivos como dizia Artaud e os seus corpos na situação de representação são vazios de carne e ossos e cheios de uma substância especial que os faz romper fronteiras físicas e psíquicas impossiveis aos mortais comuns. Não é à tôa que se costuma muitas vezes se confundir atores com deuses. Na origem do teatro ocidental, um dos episódios marcantes foi exatamente quando um homem assumiu o papel de um deus. Foi na Grande Dionisíaca, em março de 534 AC, quando Tespis a convite de Psistrato, ditador de Atenas, organiza o coro de bodes em honra de dionísios e acrescenta um novo interlocutor, que usava a máscara do Deus. Esta é uma imagem que ilustra esta volatilidade do corpo dos atores, que transformam-se diante dos espectadores em muitas outras coisas. Os espectadores não aceitam que alguém comum ocupe aquele lugar. É claro que existem muitos tipos de representação teatral, cada qual com o seu nível de exigência e de tolerância por parte da platéia. Numa representação escolar com crianças das primeiras séries de ensino costuma-se aceitar determinadas coisas que jamais seriam aceitas em outras ocasiões.

O incidente com Neto e Vladimir serviu-nos para refletir sobre este corpo sem orgãos de que são feitos os atores de teatro. As pessoas de Neto e Vladimir tem a mesma consistência que de todas as pessoas que habitam o planeta, mas o fato de se dizerem atores os coloca em outro território. Neste outro país os seus corpos comuns esvaziam-se de seus limites mundanos e dilatam-se espontaneamene em busca de darem conta das outras realidades. Este esvaziamento e dilatação ocorre em todos os níveis, desde a pré-éscola até o teatro profissional, mas é claro que neste último as exigências são muito maiores. 

De onde vem estas exigências? Do Público? Da direção? Não, ela vem do próprio ato da representação e se potencializa de acordo com os contextos que a tornam possível.

No trabalho com os atores Edilson Alves e Everaldo Pontes, na qual a direção coordena o seu mergulho em busca de suas personagens, assisto este doloroso processo de esvaziamento e dilatação e por ironia sou eu que inversamente chego a propor que talvez fosse melhor dar uma pausa, mas eles continuam obssessivamente indo em busca de seu objetivo.

Quando falamos do corpo do ator estamos falando de algo que é estruturalmente imaterial, feito em sua integridade de material psiquíco. As estruturas corporais são como  uma fronteira em forma de casca. Mesmo na pesquisa dos teatros fisicos e coreógráficos obtidos através de exaustivos processos corporais, no momento de seu acontecimento, passam a contar com este outro corpo imaterial do ator. Faz-se muita confusão com isto, mas qualquer pessoa que já tenha subido no palco sabe que o seu corpo adquire uma nova qualidade energética em situação de representação. Este estranho fenômeno não se coaduma muito com a investigação científica nos moldes cartesianos. Certa vez um amigo que é pesquisador nos laboratórios da universidade, disse-me que este tipo de coisa está mais para as ciências ocultas. De fato, talvez possamos fazer o exercício de entender os corpos dos atores usando a idéia dos vários níveis que compôe a criatura humana tal como descreve o pesquisador e místico pernambucano José Laércio do Egito em seu livro O SER.

No comments: