(diário de montagem de CONFISSÕES)
O inicio de um processo de criação no teatro, hoje, independe de se ter um texto dramático como ponto de partida. Pode-se começar da exploração das capacidades físicas e vocais do ator sem ao menos ter um tema norteando este trabalho. E isto tem sido experimentado à exaustão. O texto dramático, no entanto, não perdeu a sua força e capacidade de nos instigar.
Escolher um texto dramático para montar é uma das primeiras preocupações de um grupo teatral em busca de fazer algo. Muitos manuais de direção teatral dedicam as suas primeiras páginas a esta problemática. De fato, a questão do texto é muito delicada no processo criativo. Há quem diga que hoje tanto faz, que podemos trabalhar com qualquer coisa, com uma lista de compras e até a lista telefônica. Esta atitude de desprezo para com o texto somente reforça a sua presença. Esta é uma atitude de revolta, compreensível nas primeiras décadas do século XX, mas que agora tem apenas contribuído para o distanciamento das novas gerações das montagens dos clássicos. Alguns até argumentam que os antigos dramaturgos são peças de um vasto museu de cera para serem visto à distância porque o calor do corpo dos atores poderia derretê-los.
Certa vez, Luis Otávio Burnier realizou uma demonstração técnica no Palco do Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa, durante a realização do II Festival Nacional de Arte, com o ator Carlos Simioni. Era uma demonstração acerca da construção da partitura física do espetáculo Kelbilim, o Cão da Divindade, cujo processo de criação invertia a tradicional sequencia texto-ator-público fazendo a criação do espetáculo através da sequência ator-texto-público. No debate que se seguiu perguntei a Burnier se eu poderia utilizar aquela técnica com os textos teatrais conhecidos e ele me respondeu que sim desde que eu tivesse a coragem de escutar o corpo dos atores. A fala de Burnier, que deixei anotada em meus cadernos , serviu-me de lema para não abandonar os textos.
Mas como escolher um texto dramático? Penso, que tirando à parte, o processo de convite de alguém para dirigir determinada obra, o que acontece é que o texto é que parece nos eleger para dirigi-lo. Isto é uma inversão da lógica dominante da dramaturgia sem dramaturgo. Acho que devemos estar abertos ao retorno dos dramaturgos e usar o lema sugerido por Burnier.
O texto de As Confissões chegou-me às mãos através do dramaturgo, Paulo Vieira, que me disse para dar uma olhada no mesmo. O exame superficial do texto, seu título, As Confissões, e suas duas únicas personagens, Agostinho e Miguel, remeteram-me imediatamente ao Santo e filósofo do cristianismo. Paulo já havia escrito um belíssimo texto sobre Santa Teresa, Noite Escura, que teve duas igualmente belas encenações, uma de Antonio Cadengue no Recife, Pernanbuco, e outra dirigida pelo próprio autor em João Pessoa, Paraiba Agora voltava aos personagens emblemáticos da religiosidade ocidental através de Santo Agostinho.
É bem verdade que nós atores, diretores e todos que amam o teatro temos certa mágoa de Agostinho pelas palavras duras que dirige ao teatro em suas confissões. Agostinho foi um dos responsáveis com a sua pregação pelas perseguições aos atores que foi promovida pelo estado que adotou o cristianismo como religião oficial. No texto de Paulo Vieira temos o inusitado encontro entre um ator e o filósofo.
Este primeiro contato com o texto conquistou-me, pois senti que seria a hora de dizer a Agostinho algumas coisas entaladas na garganta a alguns séculos, mas isso não bastaria para justificar uma montagem Terminaríamos fazendo um espetáculo vingativo e panfletário e eu já havia feito as pazes com o Santo por outros caminhos.
O texto puxou-me para si ao construir um intricado triangulo amoroso entre Agostinho, sua amante da juventude e Miguel , o ator. Este amor juvenil de Agostinho e seu fim dramático com a conversão dele, já foi tratado por Jostein Gaarder, em seu livro, Vita Brevis, que imagina as possíveis cartas daquela mulher para Agostinho. O drama escrito por Paulo Vieira associa aquela relação amorosa com Miguel, um ator e diretor de uma companhia ambulante de teatro, com quem ela se associou e viveu até a morte. A ação se passa na cidade de Hipona, onde Agostinho era Bispo, que estava sitiada pelos Vândalos. Agostinho está frágil e vive os seus últimos meses de vida, quando certa noite estando só, é abordado por Miguel no mosteiro. O diálogo dos dois acontece em planos diferentes, revelando na superfície os grandes debates daquele período acerca da crença cristã e o teatro e, num nível mais profundo a sombra daquela mulher que nunca havia deixado de amar a Agostinho.
O chamamento do texto não se traduziu imediatamente na montagem. O modo como um espetáculo inicia é algo misterioso, não há regras, nem mesmo sinais seguros de que as coisas estão começando para valer. Inúmeras vezes começamos algo, reunimos um elenco, promovemos as primeiras reuniões, até ensaios, mas algo determina que aquele não é o momento propício e tudo se esvai por entre os nossos dedos. É um mistério. Por outro lado, em outras ocasiões mesmo enfrentando climas adversos damos inicio a um processo de montagem que chega com brilhantismo ao seu ápice.
Este mistério do teatro á aprendido em um longo percurso de tentativas e erros. Nós desenvolvemos a intuição do momento exato do espetáculo e passamos a nos manter dentro daquela faixa de energia que possibilita construção do mesmo. A criação teatral é repleta de acasos e necessidades.
E foi um destes acontecimentos aleatórios que me pôs diante do convite dos atores Edilson Alves e Everaldo Pontes para orientar o trabalho de conclusão da Especializaçao em Artes oferecido pela Universidade Vale do Acaraú em João Pessoa. Eles queriam concluir o curso através da montagem de um espetáculo com apresentação de um memorial do processo criativo. Esta modalidade de conclusão hoje é praticada pelas pós-graduações em artes cênicas do Brasil, Estados Unidos da América e na Europa.
O convite dos dois atores trouxe-me à mente o texto de Paulo Vieira, As Confissões. Já na nossa primeira conversa fiquei vendo as personagens falando comigo, enquanto Edilson e Everaldo, falavam-me da proposta.
Disse-lhes, então, que aceitaria o convite se eu pudesse montar o texto As Confissões, que somente Everaldo conhecia, pois o havia ganhado do próprio dramaturgo.
Passei-lhes o texto através de email e marcamos várias reuniões que nunca se realizavam. Lembrando-me sempre do mistério do teatro que envolve o tempo certo de cada coisa, trabalhei com paciência no sentido de conseguirmos uma direção positiva.
A aceitação do texto pelos atores não foi sem ressalvas, pois o mesmo é em algumas partes muito dissertativo e atores são criaturas que se alimentam de ação dramática. Contudo assegurei-lhes que na fase inicial de ensaios de mesa, inevitavelmente teríamos que estudar e adequar o texto para o trabalho de cena. Passamos ainda dois meses até que chegássemos a um aceite definitivo.
O texto estava colocado diante de nós e outros desafios se apresentavam. Foi difícil conciliar os horários até para uma primeira leitura. Eu sabia que esta era uma barreira que poderia comprometer a montagem. Faz parte deste mistério do teatro o modo como as pessoas se engajam nos projetos de montagem sacrificando horários de sono e até intervalos para as refeições. O teatro é algo que solicita de seus adeptos apenas duas coisinhas: o corpo e alma. Quando elas vêm nada é empecilho para o acontecimento do mistério.
Sobre este mistério do poder criador do teatro o Papa João Paulo II, que também foi ator, em sua carta aos artistas diz que somente eles podem intuir o que foi os primeiros instantes da criação do universo.
A tarefa de escolher um texto para montar é uma luta no plano objetivo e subjetivo. São muitas as pessoas escrevendo para teatro, mas poucos são os dramaturgos, que é uma palavra que rima com demiurgo, uma criatura que habita as regiões intermediárias entre o céu e a terra e que segundo Platão cria o universo visível através da matéria pré-existente. Os dramaturgos fazem isso criando vida a partir das vidas existentes.
Um teatro que somente trabalha com as possibilidades físicas do ator, reduz a isso toda a complexidade da vida humana, coisas que um dramaturgo através do seu talento específico é capaz de capturar.
As Confissões do dramaturgo brasileiro Paulo Viera nos escolheu para o acontecimento deste espetáculo. Um amigo me disse que a lista telefônica poderia também nos ter escolhido. Talvez, se estivéssemos propensos a trabalhar com telemarketing.
Escolher e ser escolhido por um texto não significa abrir mão dos avanços conquistados pela pesquisa em artes cênicas. Antes será uma oportunidade para não perder as raízes. Uma dramaturgia do ator sem uma dramaturgia consistente é como uma estátua de areia. Hoje vemos proliferar uma cultura teatral de performances físicas e sem alma, formando uma casta de atores incapazes de encarar os desafios propostos por grandes personagens.
Dois grandes personagens, Agostinho e Miguel, fazem de As Confissões um objeto de desejo para os atores e a direção. Alguns problemas de texto devem-se ao fato de que ele está em sua primeira versão, aquilo que em cinema chamamos de primeiro tratamento. Foi um gesto de humildade e coragem do dramaturgo permitir que uma trupe teatral se debruçasse sobre o texto ainda jovem.
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