Wednesday, December 21, 2011

A PERMANÊNCIA DA COMÉDIA



Tenho em mãos o trabalho de conclusão de curso de Celly de Freitas do bacharelado em teatro da Universidade Federal da Paraíba.  É um momento gratificante poder estar em sua banca e testemunhar a trajetória desta atriz, dramaturga, que não se cansa de estudar e evoluir em seu conhecimento sobre a arte do teatro, servindo de exemplo a muito jovens que estão agora iniciando a sua carreira.

 O seu trabalho é intitulado: Duas personagens e uma atriz, a influência da comedia dell’arte na pós-modernidade. Poderia também chamar-se: a herança ancestral de uma mulher de teatro, pois é exatamente disso que se trata. Celly analisa a arvore genealógica de duas de suas personagens: Dona Dôra e Doutora Dayse.

As personagens como símbolos da complexa alma humana transmigram através dos séculos, passando de um corpo a outro de gerações de atores; são  como memes.  Memes é o conceito criado pelo biólogo de Richard Dawkins, que semelhante aos genes da estrutura biológica, são os genes da memória cultural que passam de cérebro para cérebro através das gerações. As personagens que Celly analisa trazem os  memes de figuras muito antigas, que remontam a Comedia Dell’arte italiana, que vem de  mais além, de fontes telúricas da Fábula Atelana. Cada personagem, em sua jornada mítica vem dos primórdios de formação da criatura humana,  como lembra Joseph Campbell em seu livro O Poder do Mito.  Também Jung em trabalho O homem e seus símbolos, que  fala da permanência destes arquétipos e da sua manifestação ao longo do desenvolvimento da psique humana.

As personagens criadas por Celly de Freitas  têm a sua filiação bem  plantada em épocas remotas. É graciosos ver uma atriz montar a arvore genealógica de suas personagens, como se estas fossem parte de sua família, e de fato, para uma atriz as suas personagens inserem-se no conjunto das possibilidades humanas;  é algo com o valor de uma pessoa, fazendo portanto parte de sua linhagem.

No seu trabalho Celly nos lembra o significado e origem da comédia dell’arte, a comédia feita pelos profissionais de oficio e também nos apresenta a galeria de seus personagens. A comedia dell’arte ficou neste trabalho de reflexão acadêmica,  sendo a superfície de um lago profundo, onde a atriz navega com o barquinho de suas personagens Dona Dôra e Doutora Dayse, e sob cada uma delas estão  respectivamente Pantaleão e o Doutore da comédia.

Lembrando a Antropologia Teatral de Eugenio Barba, Celly  buscou semelhanças e diferenças.  Ela descobriu que as suas personagens tem os memes do Pantaleão e do Doutore.

No caso da Dona Dôra,  que é velha, ranzinza e tem um gosto por parceiros do sexo oposto de idade muito menor que a dela,  assemelha-se com o Pantaleão que possui estas qualidades.  Eu já tive a oportunidade de conhecer a rabugice de Dona Dôra  pessoalmente em uma de suas performances. Na sua ação ela remonta  a sua força a estas raízes antigas, encarnando uma mulher velha, muito chata e com um pendor para homens mais novos, de modo que poderíamos dizer que ela tem tudo para ser filha de Pantaleão.

Já a Doutora Dayse, que de cara lembra o doutore da comédia dell’arte, é aquela figura que fala difícil e faz questão de não ser entendido por ninguém, que vive em cima de um pedestal. O personagem da comedia italiana do século XVI fazia  referencia aos eruditos da universidade de Bolonha que naquela época ostentavam os seus títulos acadêmicos com pedantismo; a comedia então ridicularizava estes pretensos deuses das universidades  bolonhesas com a sua empáfia.

Celly mostra que estas personagens que criou inserem-se no contexto amplo de uma vida teatral que extrapola os limites do tempo e das barreiras da geografia.  Todas as personagens estão de certo modo ligadas umas as outras por laços de  consangüinidade  humana, de modo que é possível encontrar este continuo humano presente no teatro desde os tempos primitivos, conforme diz Oscar Eberle, citado por Margot Bertold em sua História do Teatro: “O teatro primitivo real é arte incorporada na forma humana e abrangendo todas as possibilidades do corpo informado pelo espírito; ele é, simultaneamente, a mais primitiva e a mais multiforme, e de qualquer maneira a mais velha arte da humanidade. Por essa razão é ainda a mais humana, a mais comovente arte. Arte imortal.”

A oportunidade de ter  um quadro comparativo das personagens de Celly  e de sua filiação antiga  nos mostra o quanto é profícuo o trabalho de estudo do teatro, que é uma área de pesquisa acadêmica com mais de 2500 anos de história, desde a Poética de Aristóteles até os nossos dias.

A performance atualiza-se com o passar dos anos,  mas o fenômeno da presença parece estar ainda ligado aos mesmos deslumbramentos que caracterizaram a criatura humana diante do esplendor da natureza e do enfretamento de suas intempéries. Os símbolos sobrevivem em algum lugar da alma humana, pois que o ser humano não é apenas um objeto material, mas uma alma imortal, que o teatro celebra constantemente através da atualização das personagens ao longo do tempo.

Ver Celly concluir o seu curso de teatro, já sabendo que ela é mestre em educação e já engatilhou o seu doutoramento, nos faz humildes diante da maravilha que é o amor de uma atriz pelo teatro.

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