Tenho em mãos o trabalho de conclusão de
curso de Celly de Freitas do bacharelado em teatro da Universidade Federal da Paraíba.
É um momento gratificante poder estar em
sua banca e testemunhar a trajetória desta atriz, dramaturga, que não se cansa
de estudar e evoluir em seu conhecimento sobre a arte do teatro, servindo de
exemplo a muito jovens que estão agora iniciando a sua carreira.
O
seu trabalho é intitulado: Duas
personagens e uma atriz, a influência da comedia dell’arte na pós-modernidade.
Poderia também chamar-se: a herança ancestral de uma mulher de teatro, pois é
exatamente disso que se trata. Celly analisa a arvore genealógica de duas de suas
personagens: Dona Dôra e Doutora Dayse.
As personagens como símbolos da complexa
alma humana transmigram através dos séculos, passando de um corpo a outro de
gerações de atores; são como memes. Memes é o conceito criado pelo biólogo de Richard
Dawkins, que semelhante aos genes da estrutura biológica, são os genes da
memória cultural que passam de cérebro para cérebro através das gerações. As
personagens que Celly analisa trazem os memes de figuras muito antigas, que remontam a
Comedia Dell’arte italiana, que vem de mais além, de fontes telúricas da Fábula Atelana.
Cada personagem, em sua jornada mítica vem dos primórdios de formação da
criatura humana, como lembra Joseph Campbell
em seu livro O Poder do Mito. Também Jung em trabalho O homem e seus símbolos,
que fala da permanência destes arquétipos
e da sua manifestação ao longo do desenvolvimento da psique humana.
As personagens criadas por Celly de
Freitas têm a sua filiação bem plantada em épocas remotas. É graciosos ver
uma atriz montar a arvore genealógica de suas personagens, como se estas fossem
parte de sua família, e de fato, para uma atriz as suas personagens inserem-se
no conjunto das possibilidades humanas;
é algo com o valor de uma pessoa, fazendo portanto parte de sua
linhagem.
No seu trabalho Celly nos lembra o significado
e origem da comédia dell’arte, a comédia feita pelos profissionais de oficio e
também nos apresenta a galeria de seus personagens. A comedia dell’arte ficou
neste trabalho de reflexão acadêmica,
sendo a superfície de um lago profundo, onde a atriz navega com o
barquinho de suas personagens Dona Dôra e Doutora Dayse, e sob cada uma delas
estão respectivamente Pantaleão e o
Doutore da comédia.
Lembrando a Antropologia Teatral de
Eugenio Barba, Celly buscou semelhanças
e diferenças. Ela descobriu que as suas
personagens tem os memes do Pantaleão e do Doutore.
No caso da Dona Dôra, que é velha, ranzinza e tem um gosto por
parceiros do sexo oposto de idade muito menor que a dela, assemelha-se com o Pantaleão que possui estas
qualidades. Eu já tive a oportunidade de
conhecer a rabugice de Dona Dôra pessoalmente em uma de suas performances. Na
sua ação ela remonta a sua força a estas
raízes antigas, encarnando uma mulher velha, muito chata e com um pendor para
homens mais novos, de modo que poderíamos dizer que ela tem tudo para ser filha
de Pantaleão.
Já a Doutora Dayse, que de cara lembra o
doutore da comédia dell’arte, é aquela figura que fala difícil e faz questão de
não ser entendido por ninguém, que vive em cima de um pedestal. O personagem da
comedia italiana do século XVI fazia referencia
aos eruditos da universidade de Bolonha que naquela época ostentavam os seus títulos
acadêmicos com pedantismo; a comedia então ridicularizava estes pretensos deuses
das universidades bolonhesas com a sua
empáfia.
Celly mostra que estas personagens que
criou inserem-se no contexto amplo de uma vida teatral que extrapola os limites
do tempo e das barreiras da geografia.
Todas as personagens estão de certo modo ligadas umas as outras por
laços de consangüinidade humana, de modo que é possível encontrar este
continuo humano presente no teatro desde os tempos primitivos, conforme diz
Oscar Eberle, citado por Margot Bertold em sua História do Teatro: “O teatro primitivo
real é arte incorporada na forma humana e abrangendo todas as possibilidades do
corpo informado pelo espírito; ele é, simultaneamente, a mais primitiva e a
mais multiforme, e de qualquer maneira a mais velha arte da humanidade. Por
essa razão é ainda a mais humana, a mais comovente arte. Arte imortal.”
A oportunidade de ter um quadro comparativo das personagens de
Celly e de sua filiação antiga nos mostra o quanto é profícuo o trabalho de
estudo do teatro, que é uma área de pesquisa acadêmica com mais de 2500 anos de
história, desde a Poética de Aristóteles até os nossos dias.
A performance atualiza-se com o passar
dos anos, mas o fenômeno da presença
parece estar ainda ligado aos mesmos deslumbramentos que caracterizaram a
criatura humana diante do esplendor da natureza e do enfretamento de suas intempéries.
Os símbolos sobrevivem em algum lugar da alma humana, pois que o ser humano não
é apenas um objeto material, mas uma alma imortal, que o teatro celebra constantemente
através da atualização das personagens ao longo do tempo.
Ver Celly concluir o seu curso de teatro,
já sabendo que ela é mestre em educação e já engatilhou o seu doutoramento, nos
faz humildes diante da maravilha que é o amor de uma atriz pelo teatro.
No comments:
Post a Comment